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Mostrando postagens de setembro 23, 2017

Antes que o mundo acabe

Conto uma história pra terminar antes que o mundo termine. Quando estive em casa pela última vez, talvez em inícios de setembro ou fins de agosto, fizemos algo curioso. Batemos num saco de boxe. Calcei luvas e me pus em posição de pugilato.  Precisava esmurrar o saco, que não revida, apenas recebe as pancadas e balança levemente, a depender da intensidade e da frequência dos golpes com que é atingido. Estive assim por cerca de 15 minutos, primeiro sozinho, depois acompanhado por meu irmão e meu pai, ambos lutadores amadores, mais amadores que lutadores, exceto por meu irmão, que realmente pode se considerar um cara que aplicaria uma boa surra em qualquer pessoa na rua se quisesse de fato. Mas ele é um sujeito manso, muito mais manso que eu, por exemplo. Eu me divertia batendo, e não apenas por bater, mas por fazer isso na frente dos dois, que me olhavam e davam risinhos irônicos do tipo "veja como bate no saco". Então fui aumentando a força e a frequência, relem

Esperando Margot

Tenho a esperança vã, porém, de que se procurar lá no fundo vou descobrir o que não quero porque isso diz respeito ao que sou agora, este que escreve sobre as histórias que talvez ouça na rua. Gente que não conheço, gente passando, gente como as gentes da minha família, soltas e sozinhas, solitárias ou acompanhadas, como o pai, a mãe, o irmão, a irmã. Eu mesmo tenho olhado no espelho e me perguntado o que diabos se reflete ali, um estranhamento que por vezes confundo com crise etária, um abismo dos 40 anos que vai chegando, um outro dos 30 que ficou pra trás, a vida que bate à porta e interroga se pode entrar. A sensação invariável de que algo se perde e se ganha silenciosamente, quando damos tudo por encerrado, como esse cliente atrasado que chega ao bar com as portas prestes a fechar. Mas o reflexo é enganoso, não responde. É apenas imagem, e as coisas de verdade acontecem longe dali. Acontecem na rua e no quarto, as sínteses do mundo público e privado. Na rua tenho

Fora dos trilhos

Mesmo esse recuo, porém, é limitado, andamos e procuramos e não encontramos, seja porque não está lá, seja porque nunca esteve. Não adianta nada, então, que pergunte sobre meu avô, como eram suas maneiras, de que lado da cama dormia, se se sentia triste num domingo de manhã ou na tarde de sábado ou prestes a fazer qualquer coisa que tinha por obrigação fazer. Essa prospecção é inútil, tendo a achar, não leva ninguém a lugar nenhum. Juntamos cacos numa baciada e depois fazemos como os mineradores que separam mercúrio do que tem valia. Mas tudo e nada tem valia, tudo se mistura nesse mergulho da memória. Tenho pouco de mim nos outros da família e menos ainda quando pergunto. O pai mesmo é um mistério, nunca sei se está feliz ou triste e mais que isso seria intrometer-me num campo que talvez me traga sofrimento, por isso jamais experimentamos esse tipo de conversa franca em torno da qual os membros de uma família constroem seus laços mais firmes. Conosco as coisas são de uma

Família iv

Falar da família é um esconderijo. É como se procurasse ali nos cômodos da casa antiga as razões para entender o que se passa agora, quando o agora é tão colado em mim e eu mesmo me estranho no que faço e sinto. Então recuo no tempo, vou até o pai e ao avô e iria mesmo até mais longe se houvesse conhecido os pais dos meus pais, mas preciso parar no meio do caminho. Se quiser ir adiante, se realmente precisar esticar a caminhada, terei de inventar que conheço os rostos das pessoas que nasceram antes de mim e dos meus pais e dar-lhes, além do rosto, um sentimento, características, modos e raivas, amores e coragens que eu mesmo sei apenas de passar por perto. Até pensei nisso certo dia quando, no carro a caminho da casa da mãe, perguntei ao pai quem tinha sido seu pai. Ele resumiu parte da história, mas, como acontece ao se contar qualquer história, esteve também às voltas consigo mesmo. Talvez seja isso que precise fazer agora, voltar no tempo, andar pra trás pra aprender n

Família iii

Hoje, quando nos reunimos, sempre lembro desses momentos nos quais a gente prendia a respiração e esperava que tudo passasse. Eu era mais velho, então as coisas aconteciam num universo diferente pra mim. Meus irmãos tinham as boy bands e os amigos do bairro novo com que se entreter. Eu tinha terminado um namoro – ela tinha terminado comigo. E precisava lidar com a separação dos meus pais. E fiz isso da maneira mais inadequada: esqueci. Coloquei de lado e me concentrei em futebol de botão, videogame, uma nova namorada e sair da escola. Depois descobri que podia ler e me esconder de tudo nos livros. Só finalmente aprendi a me esconder de fato, mas hoje não consigo tão bem. Quando peço pra minha filha de três anos se esconder na casa, ela corre e procura um lugar fácil. Nunca é um esconderijo distante ou dentro do guarda-roupa ou no cômodo mais escuro. É sempre visível, basta esticar o pescoço e a encontro. Espicho a vista e alcanço um pezinho ou os caracóis dourados dos seu

Família ii

Por exemplo, em que momento as coisas começaram a dar errado? Eu não sei. Sei que estava lá na maior do tempo, brincava e achava tudo fora do lugar. Meus pais eram diferentes dos pais dos outros meninos porque os meus eram vistos juntos poucas vezes no ano. O pai se zangava fácil, então evitávamos sua companhia, embora o quiséssemos sempre por perto. Eu fantasio? Não sei. É difícil remontar aqueles anos de agonia. O sofrimento da mãe, sobretudo esse sofrimento prolongado, demarca como um vinco. Se lembro de um carrinho ou da primeira vez que joguei videogame, ele aparece também, como uma marca d’água. Digo assim e tudo de repente parece triste e melancólico. E, visto de longe, visto de agora, quando tenho 37 anos e não mais 11, as coisas talvez tenham essa tonalidade acinzentada. Talvez fôssemos mesmo uma família triste na qual cada membro se interrogasse o que diabos estava fazendo ali. Mas, no dia a dia, o fato é que não éramos assim. Tínhamos nossos momentos, como

Família

Acho que evito esse assunto, família. Antes pensava que era apenas desinteressante falar sobre a minha família. Afinal, não via atrativos em nada, somos pessoas comuns fazendo coisas banais, como brigar e ameaçar uns aos outros com objetos perfuro-cortantes. Mas isso faz tempo, quando ainda éramos meninos e eu atirei um controle remoto no meu irmão enquanto meus pais decidiam se continuavam juntos. Ou talvez até já tivessem se separado, não lembro direito. Eu tinha 14 e estava triste na maior parte do tempo.  Depois que meu pai saiu de casa fiquei feliz, mas uma felicidade meio culpada porque agora a família estava desfeita. Não éramos mais os cinco ou seis, mas apenas quatro ou cinco, a depender de quem estivesse presente naquele momento. Por muito tempo a família era um assunto em torno do qual eu dava voltas e depois dizia que aquilo não interessava tanto, como quando sentamos num restaurante e, depois de vasculhar o cardápio e se surpreender com os preços, a gente res

Os mortos

Essa sucessão de placas no cemitério. Jazigos de crianças, velhos, adolescentes, mulheres e homens, todos mortos e agora enterrados, alguns mais recentes, outros não, uns poucos chegando naquele momento. Procuramos o lugar da minha avó. Está em meio a tanta gente. Três anos atrás fomos até lá e o lote novo tinha poucos visitantes. Era uma nova fronteira no cemitério, já apinhado de caixões e com uma fila à espera de mais espaço. Agora estava tudo cheio novamente. Do outro lado, mais pro norte, um lote mais novo era aberto. No meio do terreno, uma área daria lugar a um edifício, uma construção. Um desses prédios construídos com dinheiro do governo para habitações populares. Mas  não era isso.  Era mais um lugar para os mortos.  Passei por uma criança e depois por outra e me perguntei sobre o lugar que as pessoas ocupam depois que partem. Mesmo as mortas não morrem de todo, continuam lá e aqui, indo e vindo como se passeasssem ao gosto, por desejo próprio. Mortos e sem compr

Notas

1. Pessoas que talvez você conheça, sugere o Facebook. Mas estranho que a rede social, que não me conhece pessoalmente, nunca me viu, não sabe o que gosto de comer no domingo de manhã, sugira agora como se fôssemos velhos amigos meia dúzia de rostos estranhos com base apenas em outras pessoas que talvez eu realmente conheça, embora, na prática, sei que não conheço, tampouco elas a mim. 2. Depois de tanto tempo, hoje finalmente o fim do mundo, que, como todo fim, vem sendo permanentemente adiado, o fim como essa ideia de algo que jamais se conclui, o fim sempre vivido como uma conversa cujo final avistamos empoleirado nas dunas móveis, o fim como um selim sobre o qual sentamos um instante e depois fingimos que não é pra gente. 3. Passo hidratante, a pele ressacada do sol, me recrimino por não ouvir conselhos, nem os mais bobos do tipo use creme ou proteja sua pele ou veja se já não escreveu o bastante. Daí as bolhas pelas costas. Tiro a camisa e examino. Estão horríveis. Queri