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Mostrando postagens de outubro 22, 2017

Ainda uma carta*

A gente se põe a escrever achando que chegará ao final do mesmo jeito, conhecendo o caminho e parando o tempo que achar que pode. Mas nunca é assim. O domínio se esfarinha. Queria escrever hoje o que não tivesse fim. Como em 1996, quando terminei um namoro e precisei andar de ônibus pela cidade. Ou em 2009, quando o casamento acabou e dei voltas pela rua do bairro que eu já conhecia tão bem. Aprendi a fumar andando em círculos. Ajudou, mas não funcionou. Isso foi em abril. De lá pra cá, choveu tanto que nem sei mais se é o tempo lá fora ou aqui dentro que deu uma piorada. Sei que escurece. Uma carta de despedida é também uma carta de chegada. É uma dessas ironias que a gente cria a pretexto de entabular conversa com gente estranha. É como um papo no elevador. Escrever para dizer que vai embora. Ou escrever pra falar que fica ainda. Ficar ou ir. Tudo em arte é uma separação, do corpo, da família, da vida. Li que García Márquez passou um ano e seis meses fora de casa para c

Fio que se liga ao mar

Eu tinha escrito uma dessas coisas tristes que a gente escreve quando o mundo gira em falso e deixamos cair objetos que escolhemos carregar, pratos, louças, garfos, livros e caixas contendo fotografias, que se espalham pela rua e depois precisamos juntar com a ajuda de estranhos.  E montar em seguida o quebra-cabeças que somos nós mesmos, estendendo um fio de Ariadne para sair do labirinto e driblar o minotauro, chegando ao final sem entender direito como foi parar ali.   Mas aí reli e pensei: quero escrever uma coisa alegre. Dei meia-volta e refiz todo o caminho no mesmo passo, uma trilha de retorno desenhada por alguém diferente do que foi, não apenas nesse sentido de Heráclito, de que uma mesma pessoa não toma banho duas vezes no mesmo rio – porque o rio já é outro e ela também. A pessoa que regressa, como num dos livros do Alejandro Zambra, é sempre uma terceira, tenha passado o tempo que for, seja porque ela é uma, seja porque a casa é outra. São como uma caixa de fo

Campo de presença

Revolver os materiais.  A cada vez, a certeza de que retemos bem pouco. Muito escapa. Nada é garantido. E, no entanto, precisamos  de afundar e cavar.  Mexer com cada coisa, ter nas mãos as formas e texturas mais várias. Experimentar derrota e vitória. E depois revolver tudo em garimpo de afeto. Uma pescaria, não para fisgar, mas para fincar.  Cada linha lançada a tentativa de desenhar no ar um arco que seja também círculo, que seja a geometria de um sólido e  não de fluido, que se conforme ao recipiente. Revolver memória viva e morta. Passado e presente, memória e afeto. Esquecer para lembrar, lembrar de esquecer. E, nesse exercício, recorda da  aula na qual falou imprecisamente sobre campo de presença, um conceito semiótico escapadiço, como quase tudo numa disciplina assentada em fantasmagorias.  Embora não entendesse, apesar de lhe faltarem as fundações mais consistentes, sentia que ali, a sua frente, havia uma grandeza afetiva em direção a qual sentia-se atraído

Arquivo

Uma pane no computador colocou tudo a perder, fora todo o escrito, duas páginas de lamentações atiradas diretamente a algum canto escuro de uma máquina cuja finalidade é gravar e manter a salvo o que pensamos e dizemos. Não esta, esta cuidou em dissolver, um engenho feito para extraviar e não reter. Uma sensibilidade para soluções drásticas, exatamente como essas que evitamos na vida porque temos a certeza de que o tempo se encarrega do pior. Ela, no entanto, perdeu. Como se tivesse consciência do risco e da dor. Tratou de resolver o problema de fazer desaparecer oito mil caracteres num passe de mágica. Numa hora, palavras emaranhadas a sentimentos, um nó insolúvel que ganha forma à medida que é dito. Uma forma sem forma. E, no instante seguinte, a tela azul, números e letras se alternando sob o regime nervoso de alguma ordem caótica, uma cor espectral que remete aos primórdios da informática abrindo-se como um portal diante dos olhos. No centro da tela, o reflexo do