Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de agosto 10, 2017

O cheiro

Toda casa tem um cheiro, é como uma pessoa. Essa foi a grande descoberta da minha infância. Os amigos liam quadrinhos e viam filmes de caratê, eu pedia licença antes de entrar na sala dos outros e aspirava o ar demoradamente. Uma tinha cheiro de cozinha, comida recém-preparada, temperos, óleo, fritura. Outra, de construção, reboco, cimento, tinta fresca, solvente. Todas eram diferentes da minha, cujo odor não podia distinguir. Se casas são pessoas, quando estão próximas de mais, a gente se acostuma com o cheiro e passa a não diferenciar. Como a gente é parte dele, ninguém sabe ao certo qual o cheiro que tem. Mas a casa dos outros é diferente. Eu, por exemplo, gostava muito do cheiro da casa dos meus primos, que misturava roupa lavada e café. Na casa do Luciano, predominava o cigarro que a mãe fumava e na do Rafael, um amaciante característico, forte o bastante pra ser sentido do lado de fora. O Anderson, um amigo mais velho, tinha cheiro de graxa, gasolina e pneu – a casa e e

Futuro

Futuro é uma palavra gorda, dessas que vão adiante sem atinar para o que vem atrás. Anda sem espera de que os dias acompanhem, como um atleta que tem pressa mais que vontade de completar a prova. Um ver que o tempo passa ao acaso e não ao gosto da gente. Tem tanto de passado quanto de fantasia. O futuro na cidade é uma praia e um bairro distante, isolado numa periferia, num enlace de outras margens, mas apontando para o que ainda virá e dele esperando não o malogro, mas a sorte: Bom Futuro. E a praia é uma estação de desejos onde se depositam as palavras para que se fertilizem: Praia do Futuro. Falar desse tempo é ter com a ruína. Tempo dividido entre duas noções extremas: requalificar e ocupar. A primeira como expressão de uma gramática do poder que faz as vezes de mágica – não se pode entender a ação de revitalizar o que já tem vida senão por meio de uma manobra de força, política e ideológica. A segunda noção como um preenchimento nas suas múltiplas acepções – atividade e

Ainda uma carta

A gente se põe a escrever achando que chegará ao final do mesmo jeito, conhecendo o caminho e parando o tempo que achar que pode. Mas nunca é assim. O domínio se esfarinha. Queria escrever hoje o que não tivesse fim. Como em 1996, quando terminei um namoro e precisei andar de ônibus pela cidade. Ou em 2009, quando o casamento acabou e dei voltas pela rua do bairro que eu já conhecia tão bem. Aprendi a fumar andando em círculos. Ajudou, mas não funcionou. Isso foi em abril. De lá pra cá, choveu tanto que nem sei mais se é o tempo lá fora ou aqui dentro que deu uma piorada. Sei que escurece. Uma carta de despedida é também uma carta de chegada. É uma dessas ironias que a gente cria a pretexto de entabular conversa com gente estranha. É como um papo no elevador. Escrever para dizer que vai embora. Ou escrever pra falar que fica ainda. Ficar ou ir. Tudo em arte é uma separação, do corpo, da família, da vida. Li que García Márquez passou um ano e seis meses fora de casa para c