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Mostrando postagens de setembro 18, 2022

Brasil a la Balenciaga

  Fiquei pensando no tênis desgastado da Balenciaga vendido por dez mil reais. Roto, sujo, aparência de ter sido usado nos últimos três carnavais do Icaraí. Mas, a despeito disso, ainda caro, inalcançável ao bolso do vulgo pagador de impostos, principalmente se brasileiro. A ruína comercializada, o passado plasmado em artefato consumido por grife de luxo e posto em circulação restrita. O velho não é apenas velho, é exclusivo. Como se se pagasse também pela memória que o objeto carregaria, ao menos em intenção. O tênis da marca espanhola tem experiência sem ter tido de fato, entra no circuito com estatuto de peça de museu, um desses signos que remetem a civilizações antigas, encontrados em escavações num país qualquer de um continente distante. É como uma mensagem distópica. À falta de futuro, fabricamos o pretérito. Daí o nome da estética: “destroyed”. De tudo, séries e filmes atuais disponíveis nos serviços de streaming, do fim do mundo ao apocalipse zumbi, é o produto de massa cuj

Às margens de Ratanabá eu sentei e chorei

  Ratanabá é uma cidade fantástica cujos portões só se abrem em ocasiões especiais e em condições específicas, como quando a gasolina aumenta ou um ativista é morto na Amazônia. Ou quando descobrem gastos excessivos no cartão corporativo do presidente. Ou quando cai um novo chefe da Petrobras. Ou quando tudo isso acontece ao mesmo tempo, numa pororoca de notícias tão ruins para o governo que, num piscar de olhos, evocadas por palavras mágicas, correntes miraculosas começam a se replicar na internet com a força de um impávido exército de grávidas de Taubaté e de ETs Bilus. Eis então que, nesse instante tão amargo para qualquer mandatário às vésperas de uma eleição, materializa-se Ratanabá, com sua tecnologia avançada mesmo para os padrões futurísticos de qualquer filme do Spielberg com dinossauros teleguiados. É algo incrível mesmo, como uma Atlântida do trambique, uma Terra Média da patifaria, uma Oz da malandragem, uma Hawkins da malfeitoria. Lugar terraplanado onde o leite condensado

Numa galáxia muito distante

  Estive horas entretido com as imagens do James Webb, telescópio a quem já aprendemos a tratar na intimidade, como um amigo ou amiga que viaja para outro país e de lá nos manda postais dos lugares incríveis por onde passou. Assim tem sido com o Webb, ou o JW, ou “Jaiminho”, como ouvi de uma especialista mais afeiçoada ao aparelho. Orbitando o Sol a 1,5 milhão de km, espiou as lonjuras do infinito-além e, tempos depois de revelada a foto, endereçou-nos pelo correio, com suas iniciais no verso. Como uma janela para o já havido que nos devolve também, ao mirar no distante, a própria ideia do futuro, o que essa projeção do olhar revela? Mais que pontinhos coloridos aureolados e cordilheiras cujos vértices estão repletos de pequenos berçários de estrelas, as fotografias do telescópio capturam passado e presente ao mesmo tempo. Estão ali o já morto e o nascente. Começo e fim enredados, indistinguíveis, dobras do tempo-espaço, matéria comprimida ou em expansão a velocidades e temperaturas in

A eleição e o pastel

  O político em campanha comendo pastel é, como todos sabem, uma instituição brasileira. De Doria a Tasso, de Rosângela Moro a Serra, de Lula a FHC, todos já comeram ou teriam comido ou ainda irão comer pastel em algum momento de suas vidas eleitorais na cata do voto. Mas o que significa em si o gesto de comer o pastel? Que benefícios o candidato espera extrair do ato ao morder ou abocanhar o quitute? E por que o pastel e não outra refeição, como açaí e espetinho? O pastel é iguaria popular, verdadeiramente democrática, que agrada a gregos e troianos. Dificilmente um eleitor petista e um bolsonarista ou mesmo cirista discordariam de que, num domingo de manhã, com o sol a pino, um pastel com caldo de cana cairia muito bem. O pastel é incontroverso e sempre bem-vindo, portanto, e contra ele se colocam apenas aquelas almas na casa do sem jeito, pelas quais não se deve rezar nem um pai-nosso. Comê-lo é, dessa maneira, demonstração de uma presumida familiaridade com o povo. É uma concessão

Cidade ruína

  Passeio pela cidade um tanto aflito. Me espanta que esteja assim, um parque de ruínas. Esqueletos de praças, bancos alquebrados, por toda parte os sinais de uma deterioração avançada, como que progressivamente causada por essa falta de zelo com que vão levando tudo. Não digo que já não amargasse um certo desmazelo, uma escassez de cuidado que se reproduz com o tempo e se lê como coisa já nossa, como naturalmente feia. Mas agora, não sei. Há nesse horizonte meio corroído, meio apocalíptico uma novidade. Penso também que a pandemia talvez tenha ajudado a tornar tudo mais decaído, a atenção concentrada no que era vital, salvar as vidas de quem estivesse doente e depois recobrar certo ânimo econômico, de maneira a atenuar a penúria. Mas lembro ainda que isso vem de antes e continua agora. Um abandono dos lugares, esse não se importar com que as coisas estejam asseadas e bem guardadas para uso das pessoas. Certo ar de objeto perdido, sem dono, feição de terreno baldio mesmo onde havia

Positividade tóxica

  A positividade me aborrece, essa que se impõe como obrigação, um roteiro que se deve cumprir, do contrário recai-se no seu contrário, a negatividade. E ser negativo hoje é uma coisa muito ruim, algo moralmente condenável, uma ferida da alma, uma lepra social. Ser positivo e produtivo caminham sempre de mãos dadas. A necessidade de produzir mais em menos tempo aliada a uma sugestão mal-disfarçada de estar permanentemente em estado de reconhecimento do que há de melhor em cada coisa. Tudo se resolve na escala do indivíduo. De repente, não há problemas fora do nível pessoal. Seja seu emprego, seja sua felicidade, seja a saúde mental. A autonomia que embota. O fulano e a fulana se bastam nessa autocracia dos felizes. Se bem trabalhadas, as agonias coletivas têm uma resposta doméstica, uma vez que são convertidas em dado com o qual se lida solitariamente. Sobre o sujeito-celular pesam as respostas pelas quais se espera que as questões mais difíceis se desfaçam como num passe de mágic

Coleção

Coleciono inícios, palavras soltas, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem servir. Se acontece de ter uma ideia, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são como essas coisas que fazemos todo dia, que eu faço todo dia. Mesmo com essa dificuldade, vou juntando, acumulando. Tenho uma gaveta inteira repleta desses “quase”, uma seção da estante onde armazeno o incompleto. Todo um setor da biblioteca destinado ao inacabado. Crio uma novela, mas canso de