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Mostrando postagens de abril 30, 2018

Rever Belchior

Hoje escrevi Belchior. Tinha abusado. Esquecido a falta, deixado pra lá. Mas pronunciei ainda uma vez Belchior. Disse que tinha saudade, que já se passara um ano, que ainda ouvia suas músicas. Lembrei de coragem, ausência, susto. Descaminhos, essas dobras   da vida ao fim das quais damos com a cara no muro. Misturei alhos com bugalhos. Disse Belchior, e quis despejar nele essa raiva. O tempo que estivera longe, nunca mais vê-lo. Escrevi com ódio, um travo na boca e mãos crispadas. Domingo, a vida em suspenso, digitei numa folha em branco que teria feito em pedaços se tivesse mãos ainda. Mas já não tenho. Não fui à praia, tampouco andei de bicicleta no trecho de orla que é céu e abismo. Nele caio e levanto.   Disse mais uma vez Belchior e me arrependo porque já é tarde. Belchior não voltará. Imaginá-lo cantando como Caetano numa noite de sexta. Qual a valia? Nenhuma. Sonho desfeito. Coisa sem préstimo. Engano. Apenas lusitanismo amargo que não vem a calhar numa se

Um passo com as mãos

Antes o espírito ágrafo, sem leitura nem ressaca. Andar e não dar por nada, estar numa esquina sem que na esquina houvesse o caso de ver passar uma sombra. E estender a mão e ainda uma vez dizer que se detenha nessa curva e repare num encontro do vento com o vento. Antes a boca fosse apenas pra assobiar e esperar a cerveja e contar piadas que os amigos ouviriam e ririam muito pouco porque ele jamais aprendeu a ciência dessa graça. Antes percorresse muitos quilômetros a pé até parar. E quando parasse fosse já outro lugar, outro ano, outro tempo. Feito cápsula, trampolim e queda. Um truque que vemos no circo, um despiste de quem é hábil na prestidigitação.  Nada mais que um mecanismo de fazer passar muito rapidamente um objeto qualquer diante dos olhos.  E, mesmo assim, não vemos. Não damos pela presença. Não intuímos que está lá.

Ainda um barco

Eu vi e não vi a Femme Bateau. Vi de fotos, não vi de perto. Vi que a levaram ao passeio depois de a retirarem do mar onde permanecera por algumas horas. Vinte e quatro? Quarenta e oito? Não lembro. O barco do Sérvulo na proa da ponte nova que também é velha. E a velha, mais velha ainda. De novo ali apenas o Mara Hope, que sempre foi assumidamente antigo, enferrujado. Gosto de que levem o barco cidade afora e o depositem numa sala bem iluminada com ondas projetadas na parede e areia despejada no chão a simular um terreno que não é o dele. Barco ancorado no simulacro, mas ainda barco. E que barco era aquele? Ferro retorcido, partes faltantes, não se reconhecia no amontoado o que havia sido a sereia que a ressaca cuidou em afundar. Era triste e não era. Mais triste a Iracema refeita em linha e traço, reluzente como uma Globeleza, instalada no arco de uma quina de praia a convidar turistas enquanto monta guarda. A Iracema que nunca relaxa. Das estátuas, a minha pre

A máquina

A máquina gira. Dela escuto esses sons metálicos que sinalizam o processamento da matéria. A máquina gira, sem espera, cumprindo rigorosamente as fases e dentro de cada uma desgastando-se antes de parar. A máquina gira, e é certo que talvez um dia não possa mais produzir esse ruído que já é também o barulho do mundo.

As roupas do dia anterior

Às vezes desaprendemos. A andar, a escrever, a ter qualquer atitude que não seja um modo de estar num jogo de perguntas e respostas cujas etapas tentamos antecipar. Alertas. Um meio de adivinhar e responder conforme as expectativas do interlocutor. Isso não é uma conversa, é um monólogo. Um serviço de atendimento ao consumidor. Um check-in afetivo.   Então é preciso voltar muitas casas e andar pra trás, desfazer malfeitos, contornar acidentes, pular numa perna só até finalmente encontrar essa trilha e na trilha um caminho qualquer. E no caminho talvez haja essa porta. Acho que desaprendi a abrir portas. De início parece algo simples: girar a maçaneta, empurrar, depois fechar novamente, olhar mais uma vez a saber se está de fato vedada à passagem.  E seguir.  Tenho um projeto indefinidamente adiado. Digo isso pra me distrair. É um modo de conforto. O livro que repousa guardado é um livro seguro porque ninguém o lê. E se ninguém o lê posso imaginá-lo da maneira que eu