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Mostrando postagens de dezembro 21, 2015

Releitura

Tudo para chegar aqui: é possível estranhar-se no escrito? De onde vem o dito? Dizendo, trazemos algo de nosso que veio de muito longe? Tudo que é nosso tem endereço no fixo? Ou, à falta de vocabulário, dizemos nosso, mas a verdade é que não temos nada de próprio? Nem mesmo a palavra que usamos na hora de falar é segura de que está dizendo o que imaginamos seria a intenção da palavra antes de dizer. É assim: fora, é alheio, e alheamento diz respeito a nós também, ainda que parta de dentro, do fundo. Ler e esquecer é a releitura possível do que não compreendemos na primeira vez.

Bruxaria na hora do almoço

Reler é ler novamente a mesma história sem ter certeza de que entendeu na primeira vez, tampouco na segunda ou terceira. Foi assim que topei com esse trecho esquisito de algo conhecido, mas perdido no tempo, no lugar: um pedaço de qualquer coisa deixada em cima da mesa porque saímos às pressas e às pressas ninguém tem garantia de que levará de casa tudo de que precisa para a travessia do dia. É apenas na esquina que a gente repara no esquecido, ficou no sofá, na mesa, em cima da geladeira, e então segue viagem e se enreda nos acontecimentos do dia. Até que lembra novamente de que esqueceu e falta cobra lá seu pouco tempo de agonia. Para depois voltar a esquecer. E assim os objetos se desmaterializam e materializam diante da gente. Pequenas mágicas acontecidas de tanto esquecer e lembrar no curso das 24 horas de uma volta ao redor de si mesmo.  

O pequeno drama

É tudo o mesmo movimento de desabituação, que é o modo sereno de olhar as coisas e nas coisas descobrir um explosivo, uma granada, uma mão suspensa dando até logo pela milésima vez. Olhar pela janela e não ver o prédio em frente com as luzes acesas e um cabide na varanda, mas as luzes lá atrás, muito depois da BR e do último bairro da cidade, formando um campo de gafanhotos que voltam pra casa depois de um dia inteiro de trabalho. O limiar. Liminar. Limítrofe. Essa sorte de palavras que dizem por encanto, comunicando um segredo que vai além da acepção do dicionário. Liminarmente, estar no limiar, no entrecho, à luz do lusco-fusco, preparando-se para alguma grande mudança que não se sabe qual é nem quando virá. Como numa parada de ônibus à espera da linha que já se extinguiu. O pequeno drama doméstico da falta d’água à 1h37 da manhã. Na TV nunca mais o chuvisco de antigamente.

Sobre Gombrowicz.

E star fora de si e fora do corpo, fora dessa área habitual onde a gente costuma circular sem tropeçar nem trombar, exatamente como fazemos quando falta energia e deslizamos pela casa sem mesmo deixar de esquecer que o sofá está aqui e a mesa acolá, cada quina apontando para um joelho que não é o nosso, cada par de sapato no chão identificado pela sombra da presença que foi se fixando cada dia um pouco mais.