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Mostrando postagens de junho 22, 2019

Conversa com o tradutor

Converso com o tradutor, que me fala sobre a verdade. As coisas que dizemos ou não dizemos.  Quero perguntar por onde anda a verdade na arte, como buscá-la, de que modo encontrá-la, mas aí já escapo do objetivo da entrevista, o lançamento de um livro clássico que agora ganha uma nova leitura. O tradutor então cita uma autora. Diz que ela entendia essa verdade sobre a qual estamos falando. Mas não entendo. Agora mesmo, por exemplo: se escrevo um punhado de frases, há verdade no que digo? Presumo que sim. Estamos falando da mesma verdade, quero insistir no assunto mas a conversa já se encerrou porque dispúnhamos de pouco tempo. Por horas e horas eu continuaria ali, desajeitado e sem entender que diabos de língua era aquela que eu costumava falar. O tradutor talvez não entenda que essa verdade, uma verdade específica, é o bem mais precioso de quem se atreve a escrever. Nem todos a encontram. Depurá-la pode levar uma vida. 

Disparate de sábado à noite (parte 2)

Uma repetição: listas e mais listas. De objetos e deveres, coisas que devemos por em ordem, livros por analisar e episódios por entender. Itens da cozinha e da sala, tópicos de uma discussão já de antemão perdida e sem a qual passo bem. Listas de utensílios a levar ao conserto porque estão gastos ou falhos para o cotidiano. Um prazer: o vento que sopra desde ontem, rajadas que atravessam a casa inteira, desarranjam as roupas e fazem as capas dos livros baterem como se vivas. Um vento nem agressivo nem tenro, apenas força. Um fato banal: espetei o dedo ao cortar as unhas, cortei-as porque não sei digitar sem antes deixá-las rente, de modo que não arranhem as palavras, mas escorram, deslizem, fluam. Um palpite: talvez chova porque lá fora está quente e o céu muito bonito, de um azul escuro junino que não vejo há muito. Uma condição: agora bebo goles demorados. Escrevo e bebo, uma coisa parte de outra. Uma taça de repouso ao lado do computador como essas pessoas que espera

Sobre masculinidades

Um pouco mais atrás, na quarta passada, escrevi Masculinos , uma crônica sobre o mundo do menino, que se preserva sob muitos aspectos no mundo do homem. Na verdade, agrava-se, deteriora-se, intoxica-se. Antes disso, já havia tratado do assunto num texto publicado no início do ano .  Falei de violência, opressão, erotismo, medo e força, predação e afetos contaminados.   Usei meu exemplo para dizer que cedo um caráter se forma nessas brigas e disfarces da meninice e juventude, coisas que vamos tolerando e tornando banal mas que terminam por cobrar um preço ao cabo de alguns anos. Pagamos sempre, homem ou mulher. Em breve disponibilizo uma bibliografia básica que venho consultando sobre masculinidades. Leituras que vão da psicanálise à literatura, da antropologia à ciência política, trechos e reflexões esparsas que ajudam. Ajudam a quê? Ajudam a quem quer que esteja interessado em reconsiderar modos e ideias de homem. É coisa que se faça por uma vida inteira,

Carta de instruções

Precisei de quatro meses para voltar aqui. É um tempo razoável. Sem planejar, caí no dia 22, uma data que astrologicamente demarca a passagem de uma coisa a outra. Do que para quê? Eu não sei. Como o mundo anda vexado, ligeiro, a ideia é que anote e depois releia o que escrevi, como uma agenda ou bloco virtual. Coisas que vamos jogando sobre a mesa e depois esquecemos, brutas ainda, malfeitas e sem essa revisão de forma e conteúdo. Gosto de como soam as palavras sem artifícios, apenas o jeito de contar a quente uma história que aconteceu, por exemplo, aquele estado de fervura que experimentamos em algum momento entre a quarta e a quinta cervejas.   "Estado de fervura." É bom melhorar isso. O trecho de uma crônica sobre a filha, embrião de qualquer coisa, talvez o próximo texto da quarta-feira, talvez nada. É disso que estou falando. Afinal já se passou metade do ano e a próxima metade bate à porta.  

Uma menina

Pai, você acha que eu tô parecendo um menino? A filha vestia bermuda e uma camisa de futebol do Brasil. Olhei. Continuava uma menina, eu disse, apenas usava roupas que não costumava usar, como aquele short e a camisa que lhe demos durante a Copa e que agora, neste momento, por razões que ela não entendia, havia perdido o sentido, o ano 2014 enterrado num passado distante e depois dele também 2018. Notei algo, porém. Entendi que a filha me desafiava a dizer que sim, que ela parecia um menino. Não disse. Não pareço mesmo?, insistiu. Não, filha. Continua uma menina.