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Mostrando postagens de março 16, 2018

Papéis antigos

Remexendo papéis, revirando o próprio lixo à procura das pistas certas, revolvendo as peças no guarda-roupa e identificando marcas nas paredes, nas pernas, braços. Traços invisíveis, trajetórias percorridas de muito tempo atrás. Um gesto flagrado. Um nexo. Nesga de qualquer coisa. O risco de procurar e o de achar contido no mesmo precipício que é falar. O risco de perder e deixar passar. Uma faca cega, uma caneta estourada na bolsa, um caderno, um bloco de anotações. Um inventário de coisas para as quais se olha e num instante não estão mais lá. Marcas, grafismos, restos de corpo e fios presos. O metro exato da desistência, o marco inaugural do fracasso. Um coletivo de impressões deixadas nesse caminho da boca ao ventre e de lá até o mais dentro. A passagem de um astro sem nome. Uma força cuja grandeza sem parâmetro assusta os cientistas. Sem campo de estudo, sem objeto, sem método. Toda uma área a descoberto. Todo um sistema por existir. Toda uma pesquisa por fazer

O naufrágio da Femme Bateau

Agora entendo que tenha estado tanto tempo longe. Voltar a falar é um erro. Vejam como é a língua, inventa territórios, funda impérios onde não há nada. Palavra mágica que consome e vive do próprio gozo. Uma conversa pessoal é sempre essa busca de reinado fantástico e semeadura de vida onde quer que possa haver vida. A língua é contra a aridez, jamais a favor. Por feroz e cortante, está plantando e nesse plantio espera e aguarda. Nem que seja a comprovação de que nada brota, nada vive, nada fecunda. Daí que falar sozinho seja tão produtivo. Balbuciar, dizer uma novena íntima que ninguém jamais escute. Uma ladainha que ninguém jamais ouça. Lembro da imagem da ressaca na praia umas poucas semanas atrás. A areia revolvida, as pedras deslocadas, os bancos destroçados, tudo que era paisagem natural e memória coberto de areia. Nada no lugar. Uma tristeza, mas também alívio. Não era apenas eu que me punha fora da ordem. Era tudo, o mar, as calçadas, o vento, o guarda-

Escreve e apaga

Outro sonho. O mesmo da semana passada. Acordo mais tarde do que o habitual. Estico as pernas. Dores nas costas novamente, fisgadas persistentes que repuxam o músculo, um aviso intermitente bipando na consciência: o tempo passa. Fragmentos, rostos, um cheiro. Penso em dar uma volta de bicicleta, mas logo desisto. De repente o sol agride, os carros parecem barulhentos, as ruas muito cheias, a perspectiva de encarar o mar e diante do mar as palavras engasgarem. Checo o celular. Abro portais de notícias e vejo grupos de Whatsapp. Dezenas de mensagens aguardando resposta como ganidos de cães no meio da madrugada. Leio um artigo sobre o inominável. Vocábulos estranhos que cada língua inventa para atender necessidades próprias. Em japonês, por exemplo, é possível descrever a sensação de enamoramento diante de alguém que se acaba de conhecer. Algo como uma premonição. Que palavras posso usar agora? Quais têm serventia? Aperto control + F mentalmente. Não encontro nada.