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Mostrando postagens de agosto 11, 2019

Um dia: 27 de agosto de 2006 ou Daniel na cova dos leões*

Antigamente, era lá onde me refugiava nas tardes quentes e modorrentas: abria-a e, durante algumas horas, transportava-me para lugares cuja paisagem em nada se assemelhava à que tínhamos nos arredores de casa. Homens e mulheres também se distinguiam por seus traços físicos aos de nossa convivência; além disso, havia as vestimentas, túnicas e roupões folgados que lhes cobriam de cima a baixo. Na maior parte das vezes, o sentimento que ditava o rumo de minhas ações era este: o medo. Dos rostos retorcidos, mãos persignadas, anjos desnudos. Via-crúcis pintada por diferentes artistas, todos renascentistas. Jesus Cristo trespassado por uma lança muito comprida; o sacrifício de Isaac; o encontro com Maria Madalena; o retorno à vida de Lázaro. Arrebatado, detinha-me um pouco nas páginas brilhantes cada vez que, resfolegante, o medo dava as caras. O mesmo medo suscitado pelas figuras imutáveis das cartas de baralho, por alienados e mancos de todas as qualidades. Hoje, conto vinte e seis a

Um dia: 29 de dezembro de 2006*

"Acho que este é o último post do ano. Amanhã já não pensarei em escrever mais nada aqui antes da estúpida contagem regressiva e da queima de fogos e de tantas outras coisas que marcam, ritualisticamente, um passo à frente (?) na vida de todos nós. Em 2007 terei vinte e sete. Em 2008, vinte e oito, e assim sucessivamente. “Somam-se-me os anos”, alguém disse isso. Tinha pensado em escrever um post mais sofisticado, rebuscado em suas elucubrações e, a um só tempo, terno e simples. Bonito, quem sabe. Um post cativante. Mas desisti. Estou de saco cheio deste ano, desta vida e, principalmente, do meu teclado. É duro, escroto de teclar. Então, devo ser o mais breve possível, o mais rápido. E dizer a que vim. Pena não saber. De qualquer forma, acho que vim dizer feliz ano novo, embora não entenda bem os motivos que nos levam a entupir caixas de emails com mensagens de final de ano. Não é que não goste do período. Até gosto, lembro da infância e daquela bombinha maldosa que jogu

Azulejos*

Levanta a cabeça, sacudido. Teria ouvido? Bem verdade que estava distante, a metros da rua. Apura os ouvidos, o vento açoita com a janela aberta. Apenas ouve. Ou pensa ouvir: o que quer dizer com isso? Nada? A vizinhança cheia de crianças, meninos e meninas encardidos, calções em trapos, olhinhos sujos e bocas arreganhadas. À tardinha, improvisam jogo de bola em frente à casa, tijolos fazem as vezes de trave. As meninas, naquelas tardes de sol esmaecido, apenas observam. Algumas até se arriscam a jogar, mas logo desistem – coisa bruta, futebol. De repente, enroscados, dois ou três medem força. A leitura já perdida, nunca mais a alcançaria. Não enlouquecera – entre os gritos, distinguiu o mais agudo. Lamentações. Resmungos, chiados, grunhidos. Largou lápis e livro sobre a mesa, agora inteiramente voltado à algaravia.  A mãe a deixou sozinha em casa. Costume. Foi à feira? De braço com o namorado dando voltas e voltas na praça? Àquela hora? Era muito cedo, coisa de quatr

Sonho*

Foi assim.  Quis voltar e voltou de fato. No início ficou contente. Estava tudo como tinha deixado, a mesa, as cadeiras, o cinzeiro repleto de cotocos de cigarro fumados no corredor e as marcas na parede e roupas penduradas nos cabides. Mesmo a lâmpada permanecera acesa depois de saírem às pressas porque precisavam de um lugar maior, um lugar onde coubessem todas as coisas que tinham e que pretendiam ter nos próximos anos. O chuveiro ligado, a água caindo, o ralo do banheiro como uma draga, um pequeno buraco negro na cerâmica engolindo a energia que despencava. O mesmo aquário em cima da geladeira porque dez peixes morreram sem explicação e até hoje não tinha conseguido solucionar o mistério: um a um, foram desaparecendo, como se em vez de um homem metido num escafandro houvesse posto no vidro um serial killer.   As plantas no parapeito, os jornais empilhados do lado de fora e a guirlanda e a vizinha que não cumprimentava nem falava nada exceto quando tinha companhia. Uma viz

Primeira crônica publicada em jornal

É inexpressiva a fatia da população cearense que percebeu, até agora, que o refrão “Vó, tô estourado e meu avô é o culpado” evidencia uma troca inusual de papéis familiares. Por trás da métrica livre dos versos do forró, há a sugestão de mudança nos costumes: sai a figura da avó permissiva, cuja proposta pedagógica, fundada no anarquismo e no princípio do  laissez faire, laissez passer , tem o condão de mimar em excesso os (as) filhos (as) dos filhos (as), estragando-os (as). No lugar, entra o avô galhardo, desmantelado, raparigueiro, irrecuperável biriteiro. Esse avô hipotético de que fala a música não teve grande problema em se desincumbir da responsabilidade de ser o mantenedor de certa reserva ortodoxa no trato com os assuntos da casa. É o que é: agente da profanação dos hábitos, e se ressente de não ter podido aproveitar mais a vida. Propagandeada em outdoors da cidade, a canção  Vó, tô estourado , da banda Forró Movimento, tira proveito dessa situação-limite. Murmurada b

Corrida*

Lembro que, dez anos atrás (era 2005), lendo um romance do Marcelo Mirisola, topei com uma expressão curiosa. Era o estalido. Calhou de virar o primeiro nome deste blog, criado naquele ano. Depois viriam “urânio" qualquer coisa e, mais recentemente, uma série de expressões banais, mais ou menos enigmáticas, das quais não consigo recordar nenhuma, o que diz muito sobre os nomes, a natureza das escolhas que fiz nesse tempo - e sobre mim.   Até chegar ao “corrida espacial”, atravessei uma pororoca semântica. Hoje está aqui, como uma placa de rua ou anúncio de suíte de motel. O meu endereço no espaço-tempo. Toda semana encontro um pretexto. Como os garotos que se perdem na volta pra casa, pretextar é uma estratégia de reinvenção do cotidiano. Escrever é o garimpo das desculpas. Uma perigosa arqueologia de tralhas sentimentais que vão caindo da mochila ao longo do tempo. Até que nos lembramos de apanhá-las. A vida é pouca? A vida é muita. Não carece apetrechá-la mais