Antigamente, era lá onde me
refugiava nas tardes quentes e modorrentas: abria-a e, durante algumas horas,
transportava-me para lugares cuja paisagem em nada se assemelhava à que
tínhamos nos arredores de casa. Homens e mulheres também se distinguiam por
seus traços físicos aos de nossa convivência; além disso, havia as vestimentas,
túnicas e roupões folgados que lhes cobriam de cima a baixo. Na maior parte das
vezes, o sentimento que ditava o rumo de minhas ações era este: o medo. Dos
rostos retorcidos, mãos persignadas, anjos desnudos. Via-crúcis pintada por
diferentes artistas, todos renascentistas. Jesus Cristo trespassado por uma
lança muito comprida; o sacrifício de Isaac; o encontro com Maria Madalena; o
retorno à vida de Lázaro. Arrebatado, detinha-me um pouco nas páginas
brilhantes cada vez que, resfolegante, o medo dava as caras. O mesmo medo
suscitado pelas figuras imutáveis das cartas de baralho, por alienados e mancos
de todas as qualidades.
Hoje, conto vinte e seis anos e
alguns vincos na testa pronunciada. Verdade: falta-me também um punhado de
cabelos aqui e ali e sobra-me um tanto de preguiça, mas nada que denuncie de
forma inapelável a idade a galope. Certeza recorrente, penso na minha velhice
precoce com alguma preocupação. Em seguida, afasto tudo isso olhando-me no
espelho do banheiro. Satisfaço-me com o que ainda resta da criança que um dia
fui.
Na casa de minha mãe, por algum
motivo ainda hoje envolto em mistério, não se almoça antes de uma da tarde.
Acostumado, logo ao chegar procuro algo para comer e, assim, entreter o
estômago. Diante de uma xícara de café e algumas bolachas com manteiga,
aproveito para conversar com minha avó, em casa naquele dia. Uma velha de mais
de oitenta anos, encurvada e cheia de histórias. Outro dia, falou-nos de quando
Lampião chegou a sua cidade, Iracema, no Rio Grande do Norte. O alvoroço de
todos ante a presença do cangaceiro, o embate entre os homens de Lampião e os
“macacos”. Levou quase uma tarde contando a história. Depois, retornou à
realidade do corpo combalido, assumindo ares de pobre-coitada.
No encalço da neta, minha mãe
dava voltas na casa. Um trabalho sem fim, cuidar de criança, sobretudo quando
se trata do primeiro neto. Dedicação absoluta, às vezes se confunde e olha a
menina como se visse, ali, a filha perdida tanto tempo atrás. O assunto, por
alguma razão, vem à tona, e é quando mamãe corre ao quarto e retorna com um
grande e volumoso livro: uma bíblia com mais de vinte anos. Comprara-a de um
vendedor ambulante e, à época, custara-lhe um absurdo, o que acabou motivando
brigas intermináveis com o meu pai. A besteira, disse ele após uma semana,
tinha sido feita. Agora, cuidasse da bíblia, que fora por demais cara. Hoje, a
capa dura desprendia-se ao menor contato das mãos; abrindo-a, viam-se manchas
em muitas páginas, marcas da presença de traças e tantas outras, impressas pelo
tempo.
Mamãe depositou o livro
pesadamente na mesinha da cozinha. Na panela de pressão, o feijão dava mostras
de que tudo faria a fim de atrasar o almoço. A carne, retirada há pouco do
congelador, degelava sobre a pia, onde se encontravam algumas metades de cebola
e cheiro-verde picado. Agora conformada, a menina brincava com um sem-número de
bonecas no cercadinho. Abrindo o livro, mamãe, triunfante, apontou:
“Sabia que o nome dele era
Ricardo!”
Em seguida, correu o dedo ao
longo da folha amarela onde se viam os registros de batismos. No caso, o meu e
de meus dois irmãos. Estava tudo ali, datas, nomes de padrinhos e madrinhas e,
claro, os nomes dos padres que haviam presidido toda a liturgia. Sim, ela tinha
razão: padre Ricardo batizara-me, há mais de vinte e cinco anos, na Igreja de
São Pio X, no bairro Pan-Americano. A mesma igreja na qual, muitos anos depois,
minhas duas avós se encontrariam: uma, viva, enquanto assistia à novena; a
outra, morta pelo câncer não tinha um mês. Tudo não passou de um aceno, disse
minha avó alvoroçada ao chegar em casa.
Após nos certificarmos de todos
os nomes e datas, passei a folhear a bíblia. Em poucos minutos, encontrei
exatamente a pintura por que tinha procurado durante todo o tempo, sem
encontrar jamais uma reprodução que fosse. Ali, entre dois Rembrant, um Daniel
suplicante rodeado por muitos leões, um dos quais debruçado sobre o crânio
descarnado de um homem. Daniel tinha os olhos presos a qualquer ponto acima de
uma cadeia de rochas. Metido em trapos, aguardava que algo – uma intervenção
divina, por exemplo – o socorresse, salvando-o da morte iminente. Para ele, não
havia, a meu ver, salvação. Assim pensava quando criança; assim penso hoje.
Fora castigado? Caíra na cova casualmente? Que graves pecados tinha cometido?
Não sabia.
Eram-me indiferentes as razões
que o levaram a estar, naquele momento, onde estava: cercado por feras.
[Texto escrito na data indicada no título, 27 de agosto de 2006, e publicado num blog antigo]
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