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Mostrando postagens de novembro 2, 2017

Projeto

Começar um projeto é vida e tempo. Demorar-se no projeto, deixar que ganhe corpo e ideias próprias. Sair pra trabalhar e voltar e encontrar o projeto na sala da casa crescendo, abrindo a porta da geladeira, pescando lá de dentro o pote de sorvete de morango.  O projeto inteiro é mais que ideia, é uma realidade. É quando pensamos que tudo gira em torno disso. De repente, no supermercado, apanhamos uma cerveja e nos damos conta de que a vida agora é toda esse projeto. No trabalho enquanto escrevemos ou na rua atravessando a faixa. O projeto em tudo inscrito, o projeto em tudo vivido.  O projeto é dar-se conta de que o amor é sempre um trabalho em curso, uma paixão em andamento.  Projeto é palavra técnica, reconheço. Até árida. Há quem a condene. Pouco amorosa, cheia de quinas e uma inicial hostil, afasta o verso, ninguém que a afague, ninguém que a pegue na mão e diga: fica, acho bonita sua cor, gosto do seu cheiro. E mesmo sua marca assim tão enviesada é um charme.  E ne

A passagem de Fontela

Um poema que passa diante dos olhos nunca é uma escolha, é como um bólido, uma estrela ou amor que chega e vai ou vem. É o poema que não escolhemos o que mais gosto de ler. Como este de Orides Fontela, peças móveis, desmonte e sorte, coisas que não quero lembrar porque ele passou e eu não. Um poema que segue e ricocheteia e depois não recordamos é a ideia de um poema de passagem, que não fica, um poema móvel. Uma memória de falta, o próprio texto convertendo-se naquilo que chama de brincadeira: suas palavras e sons percutindo uma superfície vaga de carne e pele e ouvido, fixando estruturas no mais fundo, dando permanecer o que era perecível. Procurar a ossatura do poema que falta é como tatear a forma antiga do amor. Há que se colocar  acima e abaixo, sempre em frente, em todos os lugares. E, por pinceladas, delinear os contornos, sem jamais descobrir finalmente o desenho original. Que é o poema que passou. 

O conselho de Carver

Gosto por gosto mesmo de abrir ao acaso um livro. Mais ou menos como uma cartomante que pede que retiremos uma carta de um leque de outras cartas e nessa escolha tente adivinhar sabe-se lá que futuros traçados não antes nem depois, mas naquele instante. Gosto de, ao abrir, adivinhar no título do poema escolhido ao acaso uma senha ou contrassenha, um presságio, uma sorte lançada, um sussurro de mensagem esquecida em garrafa jamais encontrada. Gosto mais ainda de casualmente ler e encontrar nas entrelinhas do poema que saltou por roleta russa um conselho, mas poemas não aconselham. Poemas desaconselham, poemas ensinam ao revés.  Este, por exemplo, caiu assim feito um passaporte. Carver, “Esta vida”. Uma dança antiga. O minueto.  Reabri e tornei a fechar o livro, mas jamais se repetiu o gesto de mãos que vaga e depois vai ao mesmo ponto, chega ao mesmo canto. O poema de Carver. Esta vida. Apenas hoje, agora. Na capa a foto do poeta, que se inclina levemente pra cima, muit

Uma conversa com Pizarnik

Uma mistura de coisas, roupas, pedaços de livros, cacos de fotografias que foram se juntando e agora formam um mosaico de vidas que antes eram partes móveis de outras igualmente partidas e juntadas ao gosto da sorte, tudo por obra e força de quase nada, tudo em perfeita harmonia com o descaso do acaso.   Uma vida em mistura, rotinas, horários, coisas que se grudam por força de atração gravitacional, horas que engordam de tarefas que precisamos executar porque estamos cheios de uma matéria que não sabemos, mas talvez seja felicidade. Uma felicidade que, ninguém suspeita, é a grande novidade. E uma novidade que, mal sabem os que falam ou os que calam à passagem do amor, também tem sabe a tudo que pede que fique. Uma coisa de imiscuir-se no outro sem ter onde começar, tampouco terminar. Uma vida cada dia mais em compasso de outra coisa não sabida. Uma vida sem medo, um amor que não é medo nem morte, mas amor. Um medo de não amar o amor que não é medo. Uma morte que não amar é. U