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Mostrando postagens de outubro 31, 2013

Guarda-chuva

Uma última coisa: não vá pensando que estou querendo esticar ainda mais a conversa, que volto porque passo dos limites, que a insistência é uma dádiva, que, não faz tanto tempo assim, eu fui embora e acabei não indo além da esquina etc. Engula esse choro, eu diria se fosse uma mãe bem cruel e você uma criança a quem todos os amiguinhos tivessem deixado pra trás. É que preciso dizer, expressar, entende? Não basta formular, tenho que materializar a pergunta, recriá-la no tempo e no espaço, abri-la como um guarda-chuvas ainda que não esteja chovendo, me proteger dos golpes ainda que não caiam canivetes. Eu faço perguntas para me abrigar da chuva. Não é preocupação com as roupas, é comigo.   Vamos, não tenho tanto tempo. Passou do meu horário e a aula já começa, não quero perder. A prova oral é na semana que vem. Esse sorriso... quer dizer o quê? Não, é uma pergunta de verdade, não embute nada, não é capciosa. Não esconde outra intenção, não quero saber de nada além do qu

Sobre a crueldade

Oi, como vai? Posso puxar uma cadeira? Posso contar uma história? É, isso, só pra quebrar o gelo. Acabo de ler sobre o lado cruel de animais considerados amáveis; fofos num sentido genérico.  Focas, filhotes de lontras. Pequenos animais para os quais olhamos e logo imaginamos cenas bonitas, aconchego, calor, temos vontade de abraçar, de beijar. Então suspiramos e sonhamos alto, “bem, seria maravilhoso se todos se adorassem como as lontras se adoram”.  Enfim, toda sorte de bons sentimentos. Pois bem. Esses animais considerados fofos e amáveis são na verdade muito cruéis, foi o que acabei de ler. E, por alguma razão, isso não me causou nenhuma surpresa. Claro, não apenas eles. Se há uma justiça no mundo é que a crueldade foi democraticamente distribuída. Quero dizer, não é estranho que os tipos mais inofensivos sejam capazes de estuprar filhotes de outras espécies até a morte e continuar chafurdando nos corpos ainda que já estejam caindo aos pedaços de tão podres?

A outra mão

Vamos falar baixinho sobre o tempo conturbado, pode ser? O que acha de tanto barulho, consegue respirar e bater palmas ao mesmo tempo, tem certeza de que a próxima rua é a rua certa, o que fechar primeiro, os olhos ou a porta, qual o último pensamento antes de dormir, como reage ao silêncio? São perguntas pra checar a frequência do pulso e assim garantir que os resultados do teste sejam os mais fidedignos possível. Agora, por favor, vamos simular uma conversa normal sobre o pugilato das ideias feitas, a complexa engrenagem que alimenta a crueldade dos amigos, o grau aceitável da indiferença, a maneira menos torpe de julgar e condenar outra pessoa. Podemos começar? Não, ainda não? Enquanto não começamos, gostaria que virasse pra trás na cadeira. Está vendo aquela janela? Ela descortina uma paisagem urbana degradada. Está vendo a garagem? As pessoas na garagem? O que fazem as pessoas? Limpam, transportam objetos de um lugar para outro, ouvem música, eventualmente riem de al