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Mostrando postagens de setembro 18, 2020

Diário da quarentena (parte 6)

  Por que terminar aqui?, por que começar? Seis meses atrás, num 17 de março , entrava em modo pandêmico, ou seja, sob uma conformação tal de sentimentos adaptados a um porvir duvidoso diante do qual eu me sentia à vontade como a personagem em face da extinção naquele filme do planeta azul. E agora estamos aqui, sem saber ao certo se o pior já passou. Eu costumo perguntar a quem presumo que tenha a resposta: o pior já passou? Ninguém pode assegurar que sim, tampouco devemos esperar termos uma certeza inabalável antes de voltarmos a sair de casa, certo? Pelo menos é isso que tenho visto em fotos e vídeos de amigos. Sim, o pior passou, mas sem ter passado de fato, e dane-se que não tenha passado ainda. Lembro do tom jocoso do primeiro relato do diário da quarentena, uma piada com aquela situação embaraçosa e ao mesmo tempo excitante que é a suspensão da regra e das normas sem garantia de retorno. Num dia, estava no trabalho. Noutro, em casa, como ainda estou. Nada do que previ aconteceu

A coisa da idade

Tenho agonia, não sei se a palavra é essa, a quem se refere à própria idade assim: 4.0, 3.3, 5.0, como se falasse do modelo de um carro, de sua potência ou ano, e nunca da idade, numa manobra cujo sentido eu não entendo, já que o ponto entre os dois números não elimina o fato de que se tem 40 ou 33 ou 50 anos. Me pergunto se eu mesmo um dia direi de minha idade: 5.4, estabelecendo esse intervalo, uma espécie de suspense depois quebrado, de modo a tentar sabotar ou trapacear, fazendo o ouvinte se confundir a respeito de qual idade realmente eu tenho. Mas duvido que essa manobra seja bem-sucedida, afinal quem, ao ouvir 3.8, entende 24 anos e não 38 anos? Isso mesmo, 38, a dois de chegar aos 40, sem problema, mas me parece que não para quem atinge esse patamar, tais como outros, sempre depois dos 30, porque interpor esse ponto entre números é cacoete de quem já passou dessa casa e não de quem tem menos de 30 anos. Dificilmente se ouve de alguém: tenho 2.5, porque ter 25 anos é por si moti

Corpos vegetais

  No parque, grupos de pessoas mascaradas, um casamento se realizava enquanto ao lado um rapaz estendia a toalha e dispunha sobre ela garrafa de café, torradas, um recipiente com bolo e pão, em torno deles outros se agruparam, uma mulher com tatuagem na canela e cabelo grisalho, uma menina, um homem e um cachorro muito educado e elegante cuja consciência de si e dos seus atos parecia superar a minha quando tinha 16 anos. O parque inteiro já tomado por formações do tipo ou variações, famílias de bicicleta, famílias se exercitando, famílias deambulando, famílias com caras de enfado ou excitadas ou já idosas à espera sabe-se deus do quê. Famílias de plantas e árvores cujos galhos e troncos estavam ali muito antes de nós. Andamos, brincamos, foi divertido. Fotografamos o tronco de uma árvore e depois outro, por que não fazer disso uma série?, eu perguntei, afinal a rugosidade, o padrão de cascas, a pele lisa ou áspera das imagens que capturávamos eram uma espécie de montagem serial não apr

Paisagem de domingo

Passávamos ao lado, as barracas como esqueletos antediluvianos, formas antigas, carcaças de animais mortos deixados para trás. Restos de teto, paredes inteiras erguidas e agora esquecidas, tufos de palhas presas umas às outras por quase nada, o reboco condenado, tudo um arranjo prestes a cair, mas ainda assim de pé, como se a permanência ali dependesse de um acerto comum e nunca da ação individual de cada parte. O solo como um chão lunar, o vento forte de setembro dobrando a vegetação, coqueiros inclinados em ângulos de 30 graus. Uma pista vazia adiante, depois uma curva e mais à frente a duna, a subida íngreme vencida aos poucos por um grupo de pessoas que foi até ali, presumo, para ver o pôr do sol. Dúzias de carros estacionados à beira do asfalto, fileiras de motos e, no alto, pequenas sombras tapando a luminosidade com a mão em aba, à espera de que desse a hora para refazerem o caminho, agora duna abaixo, controlando a força de cada pisada de modo a não desabar. O fluxo de carros t

Notas animálicas

Visitava o apartamento pela primeira vez quando abri a janela de um dos quartos abafados e, no quintal, dois gatos trepavam sobre o tampo de uma cacimba, o mais magro sobre o mais gordo, o traço do rabo fino torto na ponta chamou minha atenção talvez mais do que o ato em si, de resto comum a quem se habituou a ver gatos pelos cantos da casa durante toda a vida, e, no entanto, aquilo, a posição dos bichos, uma acrobacia aérea, a localização desavergonhadamente central, o fato de que não houvesse ninguém e dispusessem do quintal para si, a certeza de que continuavam porque não me viam enquanto eu os olhava da janela recém-aberta, isso tudo me fez pensar que o quarto tinha uma vista privilegiada para os fundos de uma casa onde bichos costumeiramente cruzavam, que iam ao terreno porque lá era vazio e tranquilo e então se sentiam à vontade para fazer o que quisessem.