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Mostrando postagens de dezembro 9, 2020

Caderno de hábitos esquecidos

 Anoto tudo que esqueço, cada pequeno acontecimento, o mínimo revés ou contratempo. Tenho fixação pelo gesto suspenso, o ato que falha, a falta, o elemento que se extravia.  Por isso o registro paciente do que não há, a anotação deliberada daquilo que tardou. Uma escrita que retrocede, não avança, quando muito gira sobre o próprio eixo, como dança que nunca se desenraíza. Lembro de ainda menino fazer a caligrafia. Desenhava a letra, caprichava a cada curva da vogal ou consoante, a mãe ao lado mantendo a seu alcance também um caderno. Capa preta, impressão de que encerrava ali uma vida que se recusava a compartilhar comigo. Segredos, sim, mas por que deixá-los à vista? Eu não sabia. Lembro de escrever: o que escreve a mãe? Era uma brecha que tentava ocupar, o espaço vazio que não incomodava, pelo contrário. Na escola tinha orgulho de dizer que tinha uma mãe cuja vida não se revelava por completo, uma mãe que tinha um caderno proibido. Parei de escrever, de rascunhar essas ninharias da

Para o ano

Quando a vó falava “para o ano” (pronuncia-se “paruano”), eu entendia como um pedido para que eu interrompesse tudo que estava fazendo naquele momento e parasse o ano de fato. Era uma ordem, e eu cumpria ordens da minha vó, como quando ela gritava da porta da minha casa me chamando pra tomar o mingau e eu, que já tinha dez anos e estava cercado amigos batendo papo na esquina, punha o rabo entre as pernas e voltava. Por causa da vó passei a gostar da expressão, mesmo sem entendê-la totalmente. Para o ano sempre foi mais que o ano que vem. Era o ano em que coisas não permitidas agora passariam a ser. “Para o ano” vai escrever de caneta no caderno, para o ano vai sozinho pra escola, para o ano já pode tirar título de eleitor, para o ano não dou mais banho em você e por aí vai. Pro moleque que eu era, para o ano sempre teve esse sentido de amadurecimento mais que meramente de mudança na folha do calendário. Mas daí fui crescendo e depois vi que isso era coisa da minha cabeça e que a acepçã

Um longo abril

Não parece dezembro, pensei comigo na virada do mês. Talvez março ou abril, mas não nove de dezembro de dois mil e vinte. O fim do ano. O que ainda falta pra acabar. Mas não é como estivéssemos tão perto do fim depois de uma longa jornada. É mais como se não tivéssemos saído do lugar. Estamos no início ainda, e o mês, antes de 30 dias, se prolongou até aqui, num maçante estirão de tempo. É abril, a fase aguda da doença. Lavo a louça em casa com a TV ligada, vou ao banheiro com a TV ligada, checo o celular quando acordo e vejo que esqueci a TV ligada. A TV ligada se tornou a paisagem sonora da casa, o ruído que se incorporou a uma linguagem doméstica. Mas o calendário diz outra coisa. O calendário diz que o ano está acabando.