Memória é o redesenho do possível. Mudam-se as frases, as fotos, as distâncias. O trajeto e a até a latitude. Do pouco que permanece, inventa-se a refeição do dia. Faltam duas. Um telefonema, e a porta se abre: trocaram cacos do que tinha restado. Não era muito, não era pouco. Serviram-se café e cigarros. Logo amanheceria. Assim começa: a chave é o tempo, que, para ambos, corre de modo diferente, ora apressado, ora compassado. Um todo feito de entrega e reverência, outro de susto e circularidade. Marcou de ver um filme, acabou atrasando. Ficou em casa. Assistiu desenho animado, fumou, abriu uma lata de refrigerante e admirou-se com a intermitência das luzes. Era fim de tarde, quase noite, e ninguém esperava que nada realmente fosse acontecer. Até que, quando nada realmente aconteceu, pôs-se de pé e abriu um livrinho ao acaso, balbuciou qualquer coisa ao telefone e repetiu que amanhã seria diferente não porque quisesse, mas porque haveria de ser mesmo.
HENRIQUE ARAÚJO (https://tinyletter.com/Oskarsays)