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Mostrando postagens de janeiro 2, 2024

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

De espigões e mausoléus

Pensei em começar falando dos espigões privê e da estética plástico-temperada, da mistura do granfinismo com o mau gosto bem dosados, do creme de leite afogando o camarão que substituiu a peixada em água grande. Mas desisti no meio do caminho, parte pelo cansaço, parte pelo receio de ceder ao saudosismo mais chinfrim, parte porque não teria nada de novo a dizer que já não tenha dito antes sobre o mesmo pedaço de chão da cidade. Um pedaço disputado, remodelado e precificado à exaustão, reimaginado, demarcado e leiloado, derrubado e erguido em tempo recorde, nesse escambo de velharias. Uma usina de autoimagem cujas caldeiras nunca se apagam. A metrópole como essa página em branco na qual os gestores escrevem o que lhes dá na telha, e ninguém se interessa se o fazem por bem ou apenas porque inventam sempre de rabiscar uma marca. Ainda que essa “marca”, o grafismo torto que é também uma fratura, seja a do malfeito com ares de benfeitoria, do improviso com pretensão de planejado. Pensei que

A sua pior versão

Ouço com frequência a frase encorajadora “seja a sua melhor versão”, de modo a sugerir que o ouvinte se apresente com uma roupagem mais interessante, performando em chave estética suas ambições existenciais e profissionais. Uma versão não substantivamente diferente, é verdade, mas em aparência mais atraente do que a versão inferior, numa operação que é mais de customização de personalidade do que de autoaprendizado ou qualquer modalidade que requeira maturação. E é isso, de fato, que é mais curioso nessa história: que tenha prosperado a crença, ainda que limitada a certos discursos gerenciais, em que possa haver edições distintas de si mesmo, como um aplicativo que fosse gradualmente aprimorado e lançado para a venda, substituindo o modelo anterior, que logo também estará defasado e predisposto ao descarte, inservível para o que vem pela frente. Uma obsolescência programada do próprio eu, feito de material volátil, fluido e barateado. Num dia, molda-se a tal ou qual novidade, turbin