Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de abril 19, 2025

A festa do barco

  Quarenta anos é o tempo do navio encalhado na orla, o Mara Hope, quatro décadas de corrosão ininterrupta, de marés engolindo aos poucos os braços e pernas da embarcação cuja história a levou a se prender a um banco de areia depois de uma tentativa fracassada de resgaste. Uma noite, ou durante o dia, não sei, os cabos se desataram, talvez os tenham cortado, e então o navio se pôs em movimento, como se se cansasse do destino que o aguardava, mas logo deu com os burros n’água. O barco extraviado hoje incorporado à paisagem da cidade quase tricentenária, instituindo-se como um marco fundacional do olhar, concorrente da ponte (velha e nova, que também é velha), do farol e do calçadão, todos pertencentes a uma memorabilia urbana e a uma iconografia sem a qual a praia, sempre sob aterro, seria irreconhecível após tantas intervenções desarmoniosas. Mas o que se vê na carcaça destroçada do animal metálico reduzido ao oco pela ação devoradora do sal e dos anos? Talvez o símbolo da transiç...

Uma linhagem de sorte

  Li que privilégio mesmo é ter um avô diplomado, ou seja, que estudou e se formou na faculdade, exercendo uma profissão que, nos tempos idos, normalmente era direito ou medicina ou engenharia, e imediatamente lembrei dos meus avós. Por não tê-los conhecido, até poderia supor que fossem escolados, mestres e doutores em alguma arte, ás de fabulações e engenhosos construtores, mas a verdade é o inverso, eram pessoas como costumam ser os pais e mães de nossos pais e mães, salvo uma exceção. E agora me pego sopesando a frase, talvez porque os avós formados de que ouvi falar pela primeira vez na vida foram os de um colega da faculdade, um espécime raro para quem eu olhava e diante do qual minha vida até então se contrastava diametralmente. Os pais médicos ou advogados, não recordo, e, antes deles, a geração mais antiga, de modo a se criar uma cadeia sucessória ao fim da qual era natural que ele também acabasse por escolher a medicina ou o direito, já que “estava no sangue”, como um dote...

Fortaleza, 299

  Começo por essa arqueologia numérica, “299”, algarismo cuja fama se justifica apenas por estar perto do vizinho mais famoso, como um desses ex-BBBs que depois precisam se esforçar para serem lembrados pelo público. A data é marcante mais pelo que falta – uma unidade para chegar aos “300”, esse, sim, imponente e convidativo à reflexão – do que pelo que representa por si, como se nisso acabasse também por produzir um retrato mais fiel da metrópole à beira do tricentenário. Na cidade cujo lema informal é “tem, mas tá faltando”, a frase (que traduz o 299 à perfeição, talvez) poderia muito bem substituir “fortitudine” no brasão oficial. Empregado por todos os prefeitos desde a redemocratização (à exceção do visionário Juraci Magalhães, que tinha seu próprio bordão), o símbolo da municipalidade contrasta um forte com dois ramos de planta, um de algodão e outro de fumo. Os galhos verdes, ainda em florescência, erguendo-se contra o céu azul, em alusão ao que é sempre projeto. Eis outra ...

Não, não leia

  Comecei a desconfiar dessa pororoca de títulos no imperativo, a exemplo de não olhe pra cima, não fale, não diga seu nome, não, não olhe, não se mexa, enfim, uma série de sentenças cujo papel é estabelecer um veto a quem quer que leia/veja/assista um produto que se destina exatamente a ser lido/visto/assistido. De modo que, ao menos em princípio, trata-se de um contrassenso, um paradoxo: instituir como pacto o princípio da não leitura com uma audiência escapadiça. Esse impeditivo é apenas uma isca para o jogo, evidentemente, o gesto que deflagra um “faz-de-conta”, capturando essa atenção difusa que circula descompromissada entre os itens de uma oferta inesgotável nas prateleiras das plataformas. Talvez haja nele mais que apenas artifício. Mas o quê? Tenho apenas suspeitas, hipóteses mal formuladas que não explicam de todo, no entanto ajudam, eu espero – logo eu, que nunca resisto à isca da vedação, que sempre olho pra cima, digo o nome e me mexo quando a sugestão é o contrário. E...

O corpo morto-vivo

  De novo me vejo obrigado a encarar o corpo do ex-presidente, suas marcas e dobras, o manquejar desnudo por corredores hiperiluminados de hospitais, numa litania de gestos conhecida porque se arrasta desde 2018, quando do episódio da facada. O corpo já então como uma gramática política, senha para atuação e princípio de performatividade – a partir de agora, o território é o da disputa simbólica pela posse da verdade. O corpo-passaporte, que fala pelo falante, que dispensa a vocalização: quando toda palavra é insuficiente para atenuar-lhe os problemas (jurídicos, policiais etc.), quem assume o protagonismo é esse personagem enfermo. Ninguém há de negar que o corpo de Bolsonaro se impõe como signo de força, que sua presença nas redes e nos jornais, nas manchetes e nas notícias, exposto como item do receituário populista, como peça de defesa, é parte da estratégia de agenciamento dos temas de seu campo: um mix de messianismo com prosperidade e profecias autorrealizáveis. Sontag escre...

Elogio do pão de coco

  Ah, o pão de coco, quem no mundo há de ser-lhe contra? Não sabia que era coisa assim tão nossa, da terrinha, tal como a mania de andar arrastando as chinelas e o gosto pela sombra do poste, abrigo contra a incidência abrasiva do astro-rei. Tão fortalezense quanto a maledicência e a fofoca, mais representativo da capital do que o carro atravessado na vaga de idoso e cadeirante no estacionamento, mais nativo que rico desfilando de pulôver em pleno meio-dia. Esnobado no restante do ano, é regozijado durante o feriadão da Páscoa, no qual contracena com o peixe e o vinho barato. Nem tão querido quanto o pratinho junino nem tão detestado quanto a uva passa natalina, o pão de coco é iguaria sem ênfase, humilde. Dizem que isentão, mas é apenas amuado. Quer-se discreto a despeito do tamanho e da forma bojuda, embalado por plástico com tratos de nobreza. Trânsfuga de classe, apresentado com fidalguia na mesa do pobre e do rico, sai das prateleiras da bodega de Messejana e do Joaquim Távora...