Ah, o pão de coco, quem no mundo há de ser-lhe contra?
Não sabia que era coisa assim tão nossa, da terrinha, tal como a mania de andar arrastando as chinelas e o gosto pela sombra do poste, abrigo contra a incidência abrasiva do astro-rei.
Tão fortalezense quanto a maledicência e a fofoca, mais representativo da capital do que o carro atravessado na vaga de idoso e cadeirante no estacionamento, mais nativo que rico desfilando de pulôver em pleno meio-dia.
Esnobado no restante do ano, é regozijado durante o feriadão da Páscoa, no qual contracena com o peixe e o vinho barato.
Nem tão querido quanto o pratinho junino nem tão detestado quanto a uva passa natalina, o pão de coco é iguaria sem ênfase, humilde. Dizem que isentão, mas é apenas amuado. Quer-se discreto a despeito do tamanho e da forma bojuda, embalado por plástico com tratos de nobreza.
Trânsfuga de classe, apresentado com fidalguia na mesa do pobre e do rico, sai das prateleiras da bodega de Messejana e do Joaquim Távora para as do São Luiz da área nobre, majorando seu valor em 500% sem jamais deixar de ser o que é: pão de coco.
Tenho por ele tanto bem, talvez porque lembre minha avó, sempre cheia de fome, a dona Maria. Enfiava-lhe a mão tão logo terminasse o almoço, os beiços ainda lambuzados do peixe cozido na panela que empesteava a cozinha com esse cheiro das comidas muito condimentadas.
Cedo da manhã, o pão de coco esparramado na mesa, despedaçado em muitas partes, roído por quem de madrugada se levantasse da rede para morder as beiradas, porque em casa sempre há quem surrupie a geladeira, o esperto cujo estômago está permanentemente no negativo.
Gosto de graça do pão de coco, essa é a verdade. Somos velhos amigos. Não resisto se o vejo no supermercado, empilhado sem critério e até com uma displicência que me comove.
Trago-o comigo, esfarinhando porque a data da validade não bate com a qualidade do produto, e não raro os mercantis tiram proveito da boa vontade do cliente mais pio como eu, que sequer fiz primeira comunhão e com as artes do divino tenho pouca familiaridade.
E então ele azeda antes do previsto, no que talvez seja parte de sua sina, sua via-crúcis pascoalina. Eis o pão de coco súbito vencido, o odor passado porque o coco fermenta – eu acho que sim -, tornando-o intolerável ao olfato.
Mesmo assim experimento. Às vezes mergulho no café, divido com manteiga ou requeijão e, se me der na telha, coloco na chapa, como se fosse qualquer um, torrado depois de uns minutos.
Isso não o diminui, pelo contrário, só prova que o pão de coco é tão cativo que não o dispenso mesmo quando sua composição já não aceite que seja degustado sem que se ponha em risco a digestão.
Entendo quem o deprecie, seja a gente mais fresca, seja o gentio para quem o coco é malcheiroso e vulgar, seja quem rejeite o pão em qualquer circunstância.
Não eu, que vejo nessa comida um passaporte para outro tempo, “madeleine” meio proustiana, meio alencarina, sem o charme da baguette nem a elegância do croissant, mas com um gosto da época em que nos empanturrávamos à mesa, sem cerimônia.
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