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Mostrando postagens de abril 10, 2021

Lockdown à cearense

Cearense não entende lockdown, e não é porque se trata de palavra inglesa, porque no estado temos a maior concentração de falantes do idioma fora dos EUA e da Inglaterra. Fica em Sobral, a poucos quilômetros da capital, terra de gente escolada onde todo mundo já nasce dotado de um repertório lexical de estudante do último semestre da Casa de Cultura Britânica. Molecagem à parte, as dificuldades com o termo não vêm de sua origem estrangeira, tampouco da prosódia tortuosa, que faz a língua do gentio se dobrar numa ginástica exaustiva. O problema está no DNA do nativo mesmo, avesso a qualquer ideia de confinamento, clausura, de tempestiva vedação de um fluxo, de proibição irrecorrível. Um caráter que rejeita essas noções de "não pode", "não faça", "não vá" – há sempre quem acha que pode, que faz e que vai, mesmo no pior momento de uma doença desgraçada. Cearense entende que lockdown é um jeito de parar tudo, menos a conversa na calçada. Sabe que é medida extr

Está ruim, vai piorar

Tínhamos no início de tudo essa pretensão besta de que sairíamos melhores e que a pandemia seria oportunidade de um aprimoramento pessoal, algo como uma especialização em humanidades compulsória. E o que vemos é o contrário. Desandamos como gente, tudo em redor é prova de que os mortos não interessam, sejam uma dezena ou quatro mil. E essa suposição de um ano atrás parece agora não apenas infantil ou ingênua, mas um traço constitutivo de uma certa maneira de enxergar uma praga que traria consequências inexoráveis para todos, é verdade, mas sobretudo para uns, os mais vulneráveis, esses para os quais a onda que sobreviria não era uma micareta cultural, uma gincana do espírito, um recreio para os adultos ilustrados. De maneira que o espírito segundo o qual o confinamento seria como essa colônia de férias escolares é hoje não o erro, não uma falsa impressão ou demonstração do equívoco, mas o decalque, a comprovação de que, desde lá, março de 2020, a doença teria efeitos diferentes e se r

Rastro

Apenas hoje percebi com mais clareza o rastro deixado pelas pernas da cadeira no piso de taco do escritório onde trabalho, um cômodo abarrotado de livros a que chamo ocasionalmente de quarto do meio e noutras, quando quero soar como alguém que tem um propósito, apenas de biblioteca. Ao levantar, arrasto a cadeira para sair e a devolvo a seu canto, o que produz esse trilho esbranquiçado, uma cicatriz no chão que foi se aprofundando à medida que o tempo de confinamento passava de um mês a dois e depois a três e finalmente seis e um ano. Hoje, ao entrar no quarto de passagem para o banheiro, porque o calor é insuportável e toda hora temos de ir ao chuveiro, notei o que tomei inicialmente como sujeira, mas que não saía com a vassoura. É uma das inúmeras marcas da casa durante esse tempo. Cito outra: a parede descascada da sala, projeto malogrado de uma pintura que comecei mas da qual desisti quando a tinta foi se soltando aos bocados, em nacos que se desprendiam como a pele dessas criatura