Apenas hoje percebi com mais clareza o rastro deixado pelas pernas da cadeira no piso de taco do escritório onde trabalho, um cômodo abarrotado de livros a que chamo ocasionalmente de quarto do meio e noutras, quando quero soar como alguém que tem um propósito, apenas de biblioteca.
Ao levantar, arrasto a cadeira para sair e a devolvo a seu canto, o que produz esse trilho esbranquiçado, uma cicatriz no chão que foi se aprofundando à medida que o tempo de confinamento passava de um mês a dois e depois a três e finalmente seis e um ano.Hoje, ao entrar no quarto de passagem para o banheiro, porque o calor é insuportável e toda hora temos de ir ao chuveiro, notei o que tomei inicialmente como sujeira, mas que não saía com a vassoura. É uma das inúmeras marcas da casa durante esse tempo.
Cito outra: a parede descascada da sala, projeto malogrado de uma pintura que comecei mas da qual desisti quando a tinta foi se soltando aos bocados, em nacos que se desprendiam como a pele dessas criaturas de filme de ficção científica que se desfazem ao toque.
Agora tenho de lixar tudo novamente, comprar mais tinta e aplicá-la da maneira correta, sem deixar os calombos ou regiões inteiras falhadas, como se a parede fosse objeto de exposição em museu e não apenas esse espaço onde se penduram uns poucos quadros e contra o qual eventualmente se instala um aparelho de televisão.
O que sugere que numa pandemia não é apenas nosso corpo que se desgasta, mas o da casa também, mesmo os objetos vão se arruinando à passagem dos dias, as caçarolas e panelas de pressão, as cuscuzeiras e o micro-ondas, o liquidificador e as bocas do fogão, a geladeira e a máquina de lavar, até as roupas perdem elasticidade, ressecam.
Tudo num passo ligeiro em procura de uma falência, de uma ruína que finalmente a impede de funcionarem, numa revolução inanimada. Isso é também outro modo de deixar um rastro, de ter com o tempo uma relação que se deteriora. Há uma beleza nesse desfile de coisas que morrem.
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