Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de julho 8, 2025

Bem-vindo ao deserto

Espaço vazio de convívio e devotado ao vaivém de delivery, a pizzaria se converteu nesse lugar de passagem onde a presença do cliente – no caso, a minha – era considerada como um quase inconveniente para o atendente. É pra levar? Como é, vai comer aqui mesmo? Tem certeza de que quer fazer como “os antigos” e puxar uma mesa? Vai aguardar e abrir a embalagem na pizzaria, e não em casa, no conforto da sala, vendo um episódio da série preferida ou ouvindo uma música escolhida por você? Pensei duas vezes. Tive dúvidas se não estava fazendo algo errado, obsoleto, contrário ao regramento usualmente admitido na minha comunidade, como utilizar pochete quando pochetes tinham saído de moda. Estava ali, parado, esperando que meu pedido ficasse pronto e fosse servido para então começar a comer. Nada de outro mundo, embora soasse dessa maneira. Mas alguns locais da cidade parecem ter deixado de lado esse aspecto coletivo, tornando-se corredores de passagem, meros entrepostos entre a mercadoria deman...

Iracema

A velha no terreiro da casa é minha avó. Está de braços estendidos, as mãos espalmadas para cima, os olhos fechados, o cabelo escorrido. A pele escura, mais para terra, os olhos gateados e um nariz bojudo. Sem o vestido gasto do dia a dia, que havia tirado e agora se encontrava enrodilhado no batente da cozinha, rente à porta que dava para o quintal amplo, com a goiabeira e as galinhas, os patos e outros bichos criados soltos, misturados aos que apareciam na vizinhança descampada. O corpo rijo de mulher jovem, nos braços umas marcas cuja origem não se sabia. A mãe, pelo menos. Eu também não. Talvez o tio soubesse, mas ele morreu de covid logo no começo da pandemia, o mais velho dos irmãos ainda vivos, de modo que os segredos da avó se enterraram com ele. Todos os demais estavam desde muito cedo estragados pelo trabalho com a borracha na região norte, comidos pela bebida e o cigarro ou extraviados na mata boliviana, devorados por onça ou doença ou aposta no jogo de baralho. É 1965, um...

Pândegas de classe

Há por todo lado essas narrativas que emulam a viagem de uma classe a outra, os chamados “trânsfugas de classe”, gente cuja trajetória aspiracional acabou por levá-los para longe de seu mundo de origem, se é que se pode falar num lugar assim, do qual se parte para nunca mais voltar, sem bilhete de retorno. Instalados agora no universo do “bem-bom”, permitem-se esses exercícios de estranhamento e de desfamiliarização comportadinhos. Conduzem-se sob o signo da ironia e do deboche e se congratulam como sócios-majoritários dessa confraria de emergentes para os quais o risco é sempre zero: debruçando-se sobre o passado, não arriscam nada, pelo contrário, acumulam capital simbólico com um estrato ilustrado sem ter de abrir mão da posição de classe. Eis o melhor dos mundos, o rebaixamento econômico deixado para trás como matéria-prima de criação e o presente de regalias como espaço de trânsito e lugar de onde se escreve com a intenção de provocar. Eu mesmo, tenho de admitir, me vi em algum mo...

Beco sem saída

Um amigo liga e diz que o “tatuzão errou o caminho”. Sem esperar resposta, cai na gargalhada. Estou de férias, tenho andado longe dos jornais, entretido com tarefas domésticas, às voltas com um projeto de história que não anda e com uma tese por escrever. Logo peço explicações, que vêm entrecortadas por mais risadas, contidas a muito custo. Continuo avoado, eu lhe falo, o tempo do noticiário a anos-luz do ritmo que vinha tentando manter, preocupado com ninharias do cotidiano, como preencher as horas e tentar assegurar que a saúde já claudicante não piore. Mas o amigo insiste, quer explicar do que se trata, me fazendo entender tecnicamente o embaraço que significa o fato de que o tatuzão, essa máquina de nome jocoso cuja denominação oficial é tuneladora, errou o caminho por alguns metros, desviando-se da rota traçada previamente para a escavação do túnel do metrô que nunca foi. Eis o problema, disse, o tatuzão não tem ré, ele não volta. Supus que fosse piada, mas não era. O minhocão –...

De novo aquela cena

Entro na livraria do bairro, aquela bem-vinda lufada de ar-refrigerado e uma algaravia de conversas, uma roda formada aos fundos e gente ao telefone, o proprietário enterrado numa cadeira, a mesma garrafa de café ruim, o mesmo cheiro de modorra, a sensação de que mais uma vez vou cotejar preços e sair sem comprar nada, a culpa que me acompanha nessas horas, o fato de que, ao fim e ao cabo, priorizo uma grande plataforma de e-commerce em vez de estimular o comércio local em vias de desaparecer, o sentimento de que logo mais a única livraria do bairro pode também morrer exatamente por causa de pessoas como eu, o alívio que sinto por concluir que nada me obriga a sustentar nenhum negócio, mesmo que seja o de livros, a justificação que encontro para tomar a decisão de adiar novamente uma compra, o recuo que se segue, a subida ao setor de livros usados para quem sabe escolher algo que não seja tão caro, finalmente algo que talvez me interesse, o cheiro do livro, como é bom sentir novamente ...

Brasil para colorir

Fiquei pensando nessa febre dos livros de pintar, os Bobbie Goods, brochuras terapêuticas que lideram rankings de vendas em eventos literários, os primeiros depois daquela pesquisa cujos resultados mostraram que o Brasil é majoritariamente um país de não leitores. Ou seja, somos mais como uma sociedade para colorir do que para ler, de preencher do que de entender, de repetir maquinalmente o gesto do que de suspender mecanismos rotinizados. Mais de contornar os problemas do que de deixar de lado esses “good feelings”, de vagarosamente ir ordenando tudo conforme uma paleta selecionada ao gosto de quem manuseia esse número finito de cores do que de aceitar que a realidade é informe e multicor. Enfim, talvez haja nessa mania uma chave qualquer para entender sabe-se lá que problemas atávicos, que retornam sempre pela porta dos fundos e aos quais respondemos com esses expedientes. Afinal, o que significa essa opção pela pintura em desfavor da palavra, do andamento irrefletido da mão no lugar...