Há por todo lado essas narrativas que emulam a viagem de uma classe a outra, os chamados “trânsfugas de classe”, gente cuja trajetória aspiracional acabou por levá-los para longe de seu mundo de origem, se é que se pode falar num lugar assim, do qual se parte para nunca mais voltar, sem bilhete de retorno.
Instalados agora no universo do “bem-bom”, permitem-se esses exercícios de estranhamento e de desfamiliarização comportadinhos. Conduzem-se sob o signo da ironia e do deboche e se congratulam como sócios-majoritários dessa confraria de emergentes para os quais o risco é sempre zero: debruçando-se sobre o passado, não arriscam nada, pelo contrário, acumulam capital simbólico com um estrato ilustrado sem ter de abrir mão da posição de classe.Eis o melhor dos mundos, o rebaixamento econômico deixado para trás como matéria-prima de criação e o presente de regalias como espaço de trânsito e lugar de onde se escreve com a intenção de provocar.
Eu mesmo, tenho de admitir, me vi em algum momento esboçando rapsódias do tipo, inspirado nessa onda “ernauxiana” ou “edouardlousiana”, apenas para consumo interno, como quase tudo.
Chafurdava então num passado/presente de dificuldade material, sobretudo na infância, que mobiliza ainda hoje memórias de uma época e de fatos diante dos quais não sabia/não podia traduzir, seja por falta de repertório ou de idade ou de ambos.
Nesse tempo, a vida era como tal, isto é, havia pobres e ricos, alguns comiam no salão e outros nos fundos do restaurante, junto com a criadagem do hotel e demais empregados, e nada nessa acomodação social parecia fora do lugar ou extravagante para uma criança de antigamente, pelo contrário, era a doxa de então.
Rapidamente, no entanto, senti fadiga em relação a todos esses projetos, mais ou menos como tenho sentido sobre boa parte do que se escreve a partir desses referenciais, salvo Ernaux e Louis e também Didier Eribon.
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