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Mostrando postagens de novembro 7, 2017

Uma ignorância

Então porque considerou que era tudo muito metalinguístico, achou que deveria falar do mercado lá fora, a rua, o leite e a reforma na bodega, que agora tinha prateleiras limpas para as frutas e verduras, não mais o arranjo de arame enferrujado, mas gavetas em madeira escura que pareciam mais higiênicas. Tinha de sair pra procurar um lugar. Levou meia hora assistindo TV, outra para decidir levantar da cama, mais alguns minutos calculando se preparava o café em casa ou comia na padaria. Pequenas decisões que incidem sobre o andamento do dia como gotas de chuva num balde d ’ água. Livros empilhados na mesa, James Wood e Milton Hatoum, os dois que agora precisava ler com urgência, um porque falava tão perto de tudo que queria dizer, a coisa mais próxima da vida, e o outro porque o fazia prender a respiração ao imaginar a criança fora do abraço da mãe. Doía, um relato triste e cheio de força. E logo um pensamento estúpido que se intromete: tinha a impressão de que engordara no

Intuição da água

A sensação de que todos vivem mas a vida mesmo acontece noutro canto, que não se pode apanhá-la, o vexame de procurar e não achar, a suspeita de que caminhamos na direção errada, a intuição da água, a dúvida sobre o número certo de colheres de açúcar no café, o abismo de todas as horas do dia à disposição, o marasmo de semanas inteiras pela frente, a aflição de já contar 37 mas ainda faltar tanto, a tristeza de estar a meio caminho de sabe-se deus o quê. Ia dizendo tudo como pinceladas num quadro. Sentado, passava de meio-dia. No caderno as tarefas que anotara para a terça: nenhuma cumprida até agora. Todas por fazer. Se não tinha tempo, desejava tempo. Se tinha, desejava não tê-lo tão fartamente.   E ainda restava muito, ainda tão distante de tudo. Leu em algum lugar que Faulkner escreveu para se vingar de algo. Um livro como uma pedra atirada contra a vidraça. É preciso ter ódio, e ódio ele não tinha ou tinha pouco, quase nada que servisse de fermento para algo que atra

Aparições

A persistência do número 11. Talvez haja algo de cabalístico, um número que se segue a outro em repetição ao longo do dia, uma placa de carro, as horas do relógio, uma temperatura de geladeira, o tempo de filme etc. A sucessão e a circularidade. E essa tentativa frouxa de entender o número, um e um, o algarismo da chamada da escola, um endereço, a data em que algo acontece na vida. Pela letra C, quase sempre caía no 11. Já fui 13 e até 6 e 7, mas o mais comum era que fosse 11. Uma professora brincou: lá vem o 11. De tanto me acostumar, acabei levando pra vida e agora o número me acompanha sempre. Enxergo em todo canto. Até o dia em que vi que Otto tem tatuado na mão: 1111. Uma dupla de onze, que seriam referência a algum portal aberto periodicamente em algum lugar do mundo. Coisa boba, esotérica, tanto quanto tentar adivinhar sentido no que não há. A legibilidade do mundo é um gesto arbitrário. Não fosse a repetição, não fosse a persistência, não fossem as presença

Revisão

Revi tudo, do começo ao fim, e não entendi nada. Pior, estava feliz por não haver entendido nada, apenas uma sucessão de fatos enroscados noutros fatos. E entre uma coisa e outra os elos incompreensíveis, as conexões improváveis, as rotas impensadas, os desvios que assumimos como naturais depois que acontecem. Dava risada olhando tudo, admirava-me que a vida fosse tão possível em tão péssimas condições. Mas era isso, os desvios.  Talvez esteja nublado, talvez turvo, talvez não diga coisa com coisa ultimamente, quando sobretudo as ideias clareiam e tudo o mais é límpido, céu azul etc. Revi, e não queria mesmo rever, passar em revista, fazer esse trabalho de olhar à distância, como se empoleirado num morro ou algo assim de onde alcançaria até o mais longe do tempo.