Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de fevereiro 7, 2021

Harmonização política

  O amigo envia uma mensagem falando de BBB e dos gatilhos do programa, esses mecanismos que acionam o pior, fazem reviver situações constrangedoras, dolorosas, reabrem feridas e provocam a emersão de conteúdos já recalcados de alguma maneira, coisas que talvez preferíssemos esquecer. “Tô falando como homem branco, cis, hetero”, ele enfatiza, ecoando Fiuk, o avatar do homem cis, branco, hetero & desconstruído, um conjunto de predicados que, sabemos todos, quase sempre dá em coisa ruim, sobretudo quando agenciam (posso, Lumena?) categorias a fim de se fazer passar por bom moço. O amigo não pergunta nada, apenas diz “e o BBB?”, na pergunta em si embutindo um sentido de reflexão que dispensa aprofundamento, porque hoje em dia qualquer referência ao programa já vem naturalmente carregada de uma multiciplicidade de sentidos (posso, Lumena?) conflitantes e incômodos. No fundo, é isso mesmo, o incômodo escancarado de se ver tão bem representado por figuras públicas numa corrida pelo ouro

Amor

  O amigo se queixa de outro amigo para quem o primeiro amigo é excessivamente irônico, um tom sempre acima do necessário, nas palavras a nota ácida que flerta com uma crítica injustificada. O amigo se vale da forma para não se deter no conteúdo, dispensando-se de refletir sobre o que lhe cabe: a conduta. Enquanto o outro faz o oposto, concentra-se no conteúdo e não se preocupa com a forma, de modo que o efeito é o contrário do pretendido, ferindo mais que ajudando a mudar, impondo-se como presença e força mais do que como acolhimento. Não sei como fazer, se digo a um que está errado corro o risco de me indispor e causar mais dissabores a ambos, que estão em via de rompimento. A contenda me faz lembrar o programa da vez, onde todos os participantes se alternam entre diatribes sem muito sentido, atritos que se resolveriam de maneira simples aqui do lado de fora, imagino, sem lembrar que, aqui do lado de fora, os dois amigos se dedicam a essa guerra fria sem fim, atacando-se mutuamente,

A foto

  A mãe enviou hoje pelo WhatsApp a foto do meu avô. É uma novidade para mim, não o conheci, sequer seu rosto eu tinha visto até agora. Eu lhe disse há uma semana que gostaria de vê-lo, se possível. Então ela falou que uma tia com quem não tenho mais contato mantinha fotos antigas da família. É essa foto que tenho agora. Uma imagem extraída do convite para a missa de corpo presente, datada de outubro de 1981, eu tinha um ano quando meu avô morreu. Pergunto por que ele tem um nome diferente do que o que tinha, a mãe explica que o avô decidira adotar o nome da segunda esposa, por isso a discrepância. E acrescenta que ele era “um homem com problemas”, sem se aprofundar no assunto. Tampouco perguntei, não tenho interesse em sua história, ou finjo não ter. O avô tem um rosto feio, de animal, um nariz pronunciado e olhos miúdos, a boca fina na qual reconheço a minha própria. Disse à mãe que lembrava nossos traços, ela se irritou, eu respondi que era brincadeira. Estranho vê-lo e não sentir n

Lições de um BBB (fim)

  No mais, é sintomático que, num momento em que o Brasil agonize em meio à pandemia e Bolsonaro reúna forças para se manter no posto em 2022, o grosso dos problemas de certo campo político seja essa crise da autoimagem e as dificuldades de entendimento entre pessoas cujas posições políticas se aproximam e até coincidem, como parece ser o caso da maior parte dos participantes desta edição do BBB. Vejam, 99% dos desentendimentos e dos comportamentos mais reprováveis dentro da casa não se deram em torno de indivíduos que se situam em espectros ideológicos diferentes, como acreditávamos que aconteceria com a entrada de tantos militantes e agroboys dividindo o mesmo metro quadrado. Mas entre pessoas que, ao menos em tese, estão do mesmo lado. O problema é maior, mais fundo, mais grave, e impõe uma engenharia mais complexa que não vejo se realizar em tão curto prazo, a tempo de se viabilizar como plataforma para 2022. Não descarto, porém, a possibilidade de que esteja apenas exagerando e qu

Lições de um BBB (3)

  Há quem veja em tudo isso, porém, nada além de divertimento para massas, e tudo que se passa na casa está apartado de uma esfera da vida real, a performance dos confinados não espelhando necessariamente o que acontece aqui fora, onde pessoas lidam com problemas do dia a dia. Nessa hipótese, não cabe extrapolar condutas de participantes de um jogo televisionado pela maior emissora do país, bancado por patrocinadores e cujo objetivo principal é a conquista de um prêmio milionário, além de outros ganhos materiais de importância aproximada ou igual, como fama, contratos, papéis em produções audiovisuais. Nesses termos, e considerando-se ainda a pressão do confinamento, o comportamento dos jogadores tem de ser relativizado, jamais tomado como indício ou parte de uma corrente mais ampla, sobre a qual jogariam luz. O risco, alertam essas pessoas, é o de amplificar e distorcer esse campo, atribuindo à coletividade o que é do âmbito do indivíduo, e de um indivíduo situado num certo espaço e

Lições de um BBB (2)

  Vendo tudo sob o viés de quem está mais habituado a acompanhar movimentos políticos, não somente como entretenimento mas também como manifestação de uma certa apresentação de arquétipos sociais, é de se lamentar que, sobretudo depois de 2018, estejamos agora às voltas com o pior. Achávamos que o BBB seria uma vitrine das virtudes, 100 dias de uma transformação processual por meio da qual a audiência seria introduzida na catequese do respeito ao outro, num lento trabalho de convencimento, mas vimos exatamente o contrário. Narciso acha feio o que não é espelho. E o que se mostra é terrivelmente feio, uma autoimagem que se estilhaça. Antes agora, porém, do que às vésperas de uma eleição, momento em que essa crise de identidades talvez fragilizasse ainda mais a já vulnerável disposição para enfrentar o “montrengo” que vai se materializar sob a forma de uma candidatura à reeleição. Até lá teremos tempo de juntar cacos de um discurso. Ou isso, ou aceitamos logo que nada muda e todos esse

Lições de um BBB (1)

Sem muito que fazer num domingo e ainda não totalmente reintegrado ao trabalho depois das férias, o corpo funcionando num modo de descanso, pretendia escrever qualquer coisa sobre o reality global, mas achei que, fosse o que fosse, estaria sempre atrás, ao lado, aquém, jamais no ponto certo, então desisti. Desisti também porque o programa ainda se desenrola, e até o fim tanta coisa pode acontecer, os heróis de agora convertidos de uma hora pra outra nos vilões de amanhã, a procura em si de heróis e vilões mantida como eixo da recepção, numa novelização da vida, o confinamento dentro do confinamento. A exposição de monstruosidade em tempo real, o julgamento, a condenação e por aí vai. Queria entender tudo que se passa agora e acreditar de fato que, dos tantos episódios de agressão etc., salva-se algo, um aprendizado, uma reflexão, uma mínima demonstração de humanidade. Mas mesmo isso é pouco provável, talvez.