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Mostrando postagens de janeiro 15, 2019

Memória da hora mais quente

Logo descarto o texto que escrevi na varanda, para onde mudei porque o quarto já estava excessivamente quente. É fim de tarde, quase noite, e ao longe ainda posso ver pinceladas de um laranja claro, um rosa muito fraco que aparece como estrias em meio ao azul forte do dia nublado. É imprestável. O texto, não a varanda ou o entardecer. Tem uma qualidade, porém: é a primeira coisa alegre em dias. Talvez por isso não tenha gostado. Uma certa vulgaridade no contentamento, o travo de um pensamento que se satisfaz consigo, a falta de jeito de uma ideia que se esboça tendo como fio condutor um gracejo. Nada disso me interessa, e, no entanto, foi o que passei as últimas horas escrevendo, sentado numa cadeira de ferro, de costas para uma parede na qual há dois quadros, a camisa aberta como um desses turistas que caminham no calçadão queimados de sol e a quem lhe oferecem passeios pelas praias cearenses. É uma de minhas fantasias. Travestir-me de estrangeiro, estar alheio na própria ci

A história dos móveis

Frequentemente volto a esse texto que escrevi em maio de 2017 . É um relato simples, quase ingênuo, mas que parece carregar uma subtrama, guardar um segredo que, passado todo esse tempo, ainda não sei qual é. Talvez o fato de que os móveis de casa estejam sempre cheios de histórias, que se depositam como poeira e acabam se incorporando aos materiais de que são feitos. Então, quando quebram ou se danificam de alguma maneira, a impressão que temos é de que a própria vida também se partiu, e uma certa desordem se instaura a reboque dos pequenos incidentes. Mas talvez não haja nada nessa história, e o texto, uma crônica que publicaria algum tempo depois no jornal da cidade, seja apenas o que de fato é – mas é precisamente aí que começam as dificuldades.  Decidir o que as coisas são e o que não são de fato. No momento exato em que dissemos “de fato”. Vale para os móveis, os mesmos desde que nos mudamos, à exceção de uma estante de ferro onde mantenho uns poucos livros na sala e

Apocalipse do macho

Um dia, abri a caixa de emails e havia uma mensagem de um escritor que trata de múltiplas crises e paternidade, um texto longo mas didático sobre como esse cara – um jovem branco, menos de 40 anos, pai de uma menina de um ano - se sente incapaz de elaborar ficcionalmente os problemas do dia a dia, entre os quais se encontra o esgotamento de uma certa ideia de masculinidade. Coincidência ou não, dois dias atrás comecei a ler um romance que aborda, por via diferente, o mesmo problema: um bloqueio que se parece com um beco sem saída criativo diante do qual outro homem ainda jovem reconhece bovinamente que não há nada sobre o que escrever exceto sobre a falta de assunto, um tropo recorrente na literatura mas que, tratado dessa maneira e neste contexto, lembra uma forma de escapismo. Como se houvesse um tema – “o” tema, eu diria – sobre o qual esses narradores não conversam, ou deliberadamente resolveram não enxergar, que é a própria crise do homem que homens como eles e eu repres