Logo descarto o texto que
escrevi na varanda, para onde mudei porque o quarto já estava excessivamente quente.
É fim de tarde, quase noite, e ao longe ainda posso ver pinceladas de um
laranja claro, um rosa muito fraco que aparece como estrias em meio ao azul
forte do dia nublado.
É imprestável. O texto, não a
varanda ou o entardecer. Tem uma qualidade, porém: é a primeira coisa alegre em
dias. Talvez por isso não tenha gostado. Uma certa vulgaridade no contentamento,
o travo de um pensamento que se satisfaz consigo, a falta de jeito de uma ideia
que se esboça tendo como fio condutor um gracejo. Nada disso me interessa, e,
no entanto, foi o que passei as últimas horas escrevendo, sentado numa cadeira
de ferro, de costas para uma parede na qual há dois quadros, a camisa aberta
como um desses turistas que caminham no calçadão queimados de sol e a quem lhe oferecem
passeios pelas praias cearenses.
É uma de minhas fantasias. Travestir-me
de estrangeiro, estar alheio na própria cidade, um investigador de novidades, descobrir
um palmo de coisa inédita andando pra lá e pra cá, ser visto pelos olhos de um
outro como esse que chega e não o que já está aqui, o que nunca deixou a terra,
o que nunca a deixará.
Agora escrevo no escuro, sob o
ninho de pássaros feito dentro de uma gaiola de ferro que dependuramos como
enfeite quando Cecilia nasceu, quatro anos atrás. Logo ganhou um uso irônico:
de portas abertas, foi recebendo um a um casais de bichos a cada inverno.
Digo casais, no plural, mas no
fundo pode ser o mesmo e eu esteja enganado. Não tenho meios de descobrir,
salvo se fotografar os dois pássaros e esperar até o ano que vem, quando
voltaria a registrá-los e a cotejar os traços específicos que eventualmente
tenham. É tarefa inútil, coisa besta. Prefiro imaginar que se trata de animais
diferentes que voltam pra cá de tempos em tempos, atraídos pelo artefato branco
e pelos vestígios do ninho que resistiu ao ano que passou.
A temperatura finalmente caiu. Os
dias estão quentes, quase escaldantes, e ficar em casa é custoso. Ando de um
lado pra outro, tomo banhos intermináveis e uso o mínimo possível de roupas. Se
preciso escrever, como agora, divido o expediente em turnos de tarde, no
quarto, e à noite, na varanda.
Não é uma rotina ainda, mas um
hiato. Trabalho nesse horário, o trabalho de verdade, o que faço pra viver e
não isto que tenho feito ultimamente. As coisas que escrevo estão aqui porque seria
absurdo colocá-las num jornal. Primeiro porque não interessam a ninguém além de
mim, segundo porque são íntimas, pessoais, quase como peças de roupas das quais
me livro à medida que avanço e que guardam cheiro e textura de quem as usou.
Não é exagero ou excesso de
pudor. Talvez uma pobreza metafórica compará-las a roupas, quem sabe, um
clichê, mas somos isto também, repetições e ideias que se reciclam, uma
limitação no dizer que expande e delimita ao mesmo tempo o que pretendemos
falar.
Cada coisa que fazemos, no
entanto, tem uma marca de nascença, como esses sinais espalhados pelo
corpo, os pelos mais espessos ou delgados, as costas arqueadas ou largas, os pés
cavados ou retos, as canelas finas ou grossas e por aí vai. Do mesmo modo, o
que fazemos ganha imediatamente uma distinção, o que sai dos poros, do pênis e da vagina, da boca e
dos olhos, o que vira matéria depois de purgado do organismo, o que se
sedimenta num suporte depois de eliminado de um abismo.
Talvez o que não tenha gostado nesse
texto que ainda não joguei fora tenha sido exatamente a falta de uma marca, de
um sinal, desse golpe de nascença. Mesmo risonho, quase feliz, não soava como
nada que tivesse escrito, mas como se o tivesse feito com a finalidade de
parecer alegre. E disso não gostei enquanto escrevia, porque logo me pareceu
falso, e menos ainda quando terminei, porque confirmei que era mesmo uma coisa estúpida,
uma crônica ou conto que não levava a lugar nenhum, dava voltas em torno de si
e ao final consumia-se numa luz neon acesa por mãos de terceiros.
E isso é um defeito. Palavras
que não conduzem, imagens que estão paradas, frases com raízes que não andam
por si mesmas. A despeito de não gostar, mantive-o aqui, ao lado, enquanto
escrevia este comentário ao texto rejeitado.
Já é totalmente escuro, noite
funda, sem gradações nem rasgos de nenhuma cor. Apenas a noite do dia 15 de
janeiro de 2019, dia liso durante o qual preenchi algumas horas com uma ideia
postiça da qual recuei depois, insatisfeito.
É possível que chova, estou
apostando que sim, embora os indícios no horizonte não apontem para isso, e o
calor, antes maciço como a mão pesada do pai quando somos crianças, tenha
cedido finalmente e dele reste apenas a memória da hora mais quente.
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