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Mostrando postagens de novembro 12, 2017

Ivone ii

Ivone acordava assustada no meio da noite, dizia ter visto o pai chamando na porta. Depois deitava, falava sobre a morte, que não a colocassem no caixão ainda viva. Tinha medo de escuro, de bater e ninguém abrir, tinha medo de que alguém a sufocasse enquanto dormia, medo de que a mãe do papai a convidasse para uma volta e ela não tornasse.   Os netos riam, ainda crianças. Não se davam conta de que Ivone não delirava, que tinha razão nas advertências. Ela ralhava, dizia: vocês vão ver. Um dia estarei aqui e, no dia seguinte, não estarei mais. E repetia uma frase, sempre a mesma frase apocalíptica que anunciava sabe-se lá que pragas: quando a roda grande entrar na roda pequena, será a hora certa. Que hora? Que roda? E caíam na gargalhada. Numa quinta-feira de abril de 2008, um dos filhos de Ivone voltava do trabalho para casa. Dirigia um Fusca. Distraiu-se com o telefone e bateu o carro contra uma árvore à beira da estrada. Desceu com vida, contaram testemunhas. Depois se s

Ivone

Conversei com H longamente no último fim de semana. Parecia mais velho, não exatamente feio, mas os cabelos mais brancos e uns quilos mais magro. H, eu lhe disse, o que ainda há para ser feito? Calado feito jagunço sob a luz baça da mesa do café, os óculos retangulares, as lentes muito sujas, as mãos postas como se em reza. Inspecionei ao redor: casais velhos e moços, apenas casais. Entretidos com braços e pernas, casais e suas crianças, casais e suas mucamas de avental branco. Casais aristocráticos como se ainda no século XIX. Casais indiferentes, casais mantidos à força de algum elo comercial. Casais como sócios numa start-up. Casais como ex-amigos, como parceiros de buraco, como recém-casados. Casais como espécimes raras de um mundo que não existe mais.  Casais de toda sorte.  O café esfriou. Perguntei a H se queria o biscoito que acompanha a bebida. Como dissesse não, estiquei o braço e comi. Tinha um livro que pegara sem grande interesse da estante e que acabaria devolvend

Leitura de sonhos

Li em algum lugar que anotar os sonhos, tentar descrevê-los, pode ser um exercício interessante de escrita. Porque os sonhos resistem a uma apreensão lógica, porque seu encadeamento narrativo não se presta a sistematizações etc. Talvez tenha sido em Elena Ferrante, talvez em Susan Sontag, talvez noutra escritora que não lembro agora. De todo modo, foi um conselho de mulher durante uma leitura já perto de dormir, numa hora em que baixo a guarda e tudo pode acontecer. Então sonhei, primeiro com um gato doméstico que me atacava. Quer dizer, armava um bote, murchava as orelhas como fazem os gatos quando em posição de combate, mas jamais consumava o golpe. Permanecia em estado de tensão, de ataque iminente. Eu tentava me defender, antecipando-me ao movimento. Atirava um lençol, e mesmo encoberto o felino continuava a preparar o salto. Eu tinha medo do arranhão, das mordidas, medo do estrago que faria no meu rosto, nos ombros, no corpo inteiro. O sonho termina antes do pulo, mas a