Pular para o conteúdo principal

Leitura de sonhos

Li em algum lugar que anotar os sonhos, tentar descrevê-los, pode ser um exercício interessante de escrita. Porque os sonhos resistem a uma apreensão lógica, porque seu encadeamento narrativo não se presta a sistematizações etc.

Talvez tenha sido em Elena Ferrante, talvez em Susan Sontag, talvez noutra escritora que não lembro agora. De todo modo, foi um conselho de mulher durante uma leitura já perto de dormir, numa hora em que baixo a guarda e tudo pode acontecer.

Então sonhei, primeiro com um gato doméstico que me atacava. Quer dizer, armava um bote, murchava as orelhas como fazem os gatos quando em posição de combate, mas jamais consumava o golpe. Permanecia em estado de tensão, de ataque iminente. Eu tentava me defender, antecipando-me ao movimento. Atirava um lençol, e mesmo encoberto o felino continuava a preparar o salto. Eu tinha medo do arranhão, das mordidas, medo do estrago que faria no meu rosto, nos ombros, no corpo inteiro. O sonho termina antes do pulo, mas a dúvida que restou depois foi: ele me atacaria de fato?

O segundo sonho foi uma inundação, como num filme tipicamente catastrofista. Uma cidade varrida pelas águas que chegam de alguma comporta aberta. De repente, as ruas e avenidas estão cobertas, e precisamos todos nos empoleirar nos prédios mais altos até que o nível baixe. Aqui, ao contrário do primeiro sonho, a ameaça se concretiza, e tenho de me defender exatamente como fazem os mocinhos dos filmes de ação. Procurando um lugar seguro, correndo pra lá e pra cá, entrando em elevadores e deixando cômodos prestes a desabar, num pout-pourri de cenas já vistas dezenas de vezes na TV.

Uma passagem desse sonho é muito curiosa: estou num lugar à espera de um elevador. Olho para o teto, vejo que a água escorre pelas paredes – não entendo por quê – e penso: isso vai cair, exatamente como no cinema. Tenho a consciência de que, na ficção, era uma imagem já conhecida por repetição. Um clichê.

Então vou embora certo de que assistir a filmes ruins foi um ganho pedagógico na minha estratégia de sobrevivência. Como no caso do gato, não sei se realmente o teto desaba. Eu não estou mais lá pra saber. 

Resisto a interpretações de sonhos, não dou tanta atenção a pedaços de realidade que se recombinam enquanto dormimos. Lê-los como indício de outra coisa soa como interpretar a borra do café ou o alinhamento dos astros. 

E talvez no fim das contas todo trabalho interpretativo seja isso mesmo. Uma adivinhação mais que ordenamento de signos, um tatear cego mais que montagem de peças, um arranjo arbitrário mais que simplificação do caos. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...