Desejo o cigarro que não fumo há dois dias, a corrida que não fiz, o banho que não tomei, os livros que não li, os filmes que interrompi e as séries que larguei pausadas entre o grito e o crime. Desejo o tempo que levei atravessando o hall do condomínio, todos os segundos digitando nos botões na máquina de lavar, as horas perdidas entre abrir e fechar a geladeira. Desejo o perfume que sobe do apartamento de baixo, a luz de uma hora intervalar, o jeito de atravessar a rua daquele homem que carrega uma sacola a tiracolo, a fala de um amigo que engole certas letras, os pés flexionados sob as pernas da mulher que pede uma sopa na padaria, a tranquilidade de esperar o caixa emitir a nota. Desejo a coragem de telefonar para a mãe, de perguntar ao pai se está tudo bem, de ir até o cemitério e dizer bom dia ou boa tarde, a depender da hora. Desejo força para abrir a gaveta e arrumar os fios soltos, carregadores de celular, baterias e canetas que fui acumulando durante décadas
HENRIQUE ARAÚJO (https://tinyletter.com/Oskarsays)