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Mostrando postagens de outubro 17, 2013

Abraço

Agora é minha vez de falar: estranho mesmo, se quer saber, é voltar no tempo, como tenho voltado com tanta frequência, e reencontrar tudo que foi dito e de lá não extrair uma vírgula de sinceridade. Nada. Um farelo de sentença honesta, uma porção miúda do que pensei seria a paisagem natural. Então descubro: não há paisagem natural. Cada volta é uma viagem diferente. Comparei fotografias, medi sorrisos, esquadrinhei abraços, cruzei as mesmas ruas, avaliei declarações de teor semelhante – acredite, nada é como antes. O clichê venceu. Acabo de retornar de uma dessas viagens estranhas em que temos a opção de descer do carro e caminhar horas a fio por uma cidade exclusivamente imaginada por nós. Sabe o que encontrei? O nada. Pra onde virava, dava com a cara na parede. O pior: eu gargalhava. Gargalhava na encruzilhada. Gargalhava nas esquinas. Gargalhava nos balcões dos bares que ainda guardavam marcas de cigarros.   Nessa cidade tão vazia deparei, no entanto, com algo im

Javalis não transpiram

Javalis não transpiram, foi o que ouvi quando a jornalista encarou o javali como se precisasse dizer algo realmente importante. Então soltou essa: javalis não transpiram.  Estava comendo, melhor, esperando comer. Pedira o de sempre, filé à parmegiana, o prato mais rápido do restaurante. A jornalista, melhor, a Glória Maria, vestida com roupas de repórter aventureiro em visita a algum país exótico, celebrava a diversidade da fauna desse país exótico etc. Foi aí que disse: javalis não transpiram.  Tive pena ao imaginar cada um dos poros daquele animal tão bonito a sua maneira. Cada orifício obstruído pelo arbítrio da natureza. Suando pra dentro. A temperatura do corpo à mercê de um mecanismo de compreensão ainda mais estranha que o nosso.    Javalis não transpiram, repetiu Glória Maria. Era como se dissesse: vejam como cada segundo de vida pode ser uma doce confusão entre o que queremos e o que podemos ter.  E t udo isso só fez aumentar a solidariedade interespécie.  Trans

Toda a água

Antes de sair de casa, tomou outra xícara de café. Apanhou uma caneta e prometeu guardar silêncio ao longo das próximas horas, fizesse chuva ou sol, morressem pandas ou não. Os pensamentos assim, empurrando-se uns aos outros, como refugiados a desembarcar de um navio à beira do naufrágio. Saiu. Voltou. Tinha esquecido o mp3, que pôs na mochila. Abriu a geladeira mais uma vez. A garrafa cheia, tudo guardado, faltavam cervejas, poucas frutas, nenhum chocolate, azeitonas vencidas, escassez de iogurte, hambúrguer congelado, uma panela destampada. A água sempre com esse gosto estranho, um sabor metálico, cheia de temperos. Considerou tomar outro banho, colocar outra roupa, embarcar noutro ônibus e descer noutro ponto. Devolveu o mp3 à mesa. Tampou a panela. Comeu uma azeitona. Gostou do sabor. Abriu a janela. Esperaria que a chuva molhasse tudo.