Antes de sair de casa, tomou outra xícara
de café. Apanhou uma caneta e prometeu guardar silêncio ao longo
das próximas horas, fizesse chuva ou sol, morressem pandas ou não. Os pensamentos
assim, empurrando-se uns aos outros, como refugiados a desembarcar de um navio à
beira do naufrágio. Saiu. Voltou. Tinha esquecido o mp3, que pôs na mochila. Abriu
a geladeira mais uma vez. A garrafa cheia, tudo guardado, faltavam cervejas,
poucas frutas, nenhum chocolate, azeitonas vencidas, escassez de iogurte,
hambúrguer congelado, uma panela destampada. A água sempre com esse gosto estranho,
um sabor metálico, cheia de temperos. Considerou tomar outro banho, colocar
outra roupa, embarcar noutro ônibus e descer noutro ponto. Devolveu o mp3 à
mesa. Tampou a panela. Comeu uma azeitona. Gostou do sabor. Abriu a janela. Esperaria
que a chuva molhasse tudo.
Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...