Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de setembro 6, 2017

Marcas

Uma cicatriz, uma mancha escura, um borrão no rosto, estrias nas coxas, outra cicatriz no braço e a linha dos olhos um pouco torta, todo o lado esquerdo pendendo para baixo, como a anunciar que certo conjunto harmonioso havia estado ali há muito tempo mas já tinha ido embora. Daí que a sola do sapato se gastasse mais do lado direito que do esquerdo, daí que as camisas apertassem mais no braço direito que no esquerdo, daí que os lábios repuxassem mais no direito que no esquerdo e os olhos diferissem no modo como fixam um objeto a sua frente. Tudo um desalinho, desarranjo, mas talvez fosse assim, assim talvez tivesse aprendido a enxergar o torto e o enviesado, o certo e o errado equivalendo-se porque em algum momento eles entrariam em conjunção. E a disjunção fosse a etapa momentânea, o torto por reto e vice-versa. Agora tinha aula e na aula desceria ao inferno acompanhando o personagem que nos círculos depara com Beatriz. Agora usaria a medida incerta de sua vista p

Matéria escura

Então a gente estava no carro voltando e tocava uma música, um axé antigo, tipo Ivete no começo da carreira,  e é incrível como essas músicas são bonitas, eu pensei, como são parte já de qualquer coisa afetiva daquele tempo difícil de precisar mas no qual a gente se debatia com a vida sem saber que era vida ainda o que a gente tinha nas mãos, naquele tempo eu só achava que as coisas eram como eram porque o tempo era aquele e não outro, se fossem meus pais teriam dificuldades diferentes das minhas, mas depois fui entendendo que a vida muda pouco ou quase nada, a vida, como naquela música que fala de amor e outras coisas assim em ritmo alucinado, era uma matéria escura que vamos entendendo menos ainda à medida que o tempo passa. E já passou tanto. 

Levantar a vista

Saí pra fumar e levantei a vista, levantar a vista equivale a tropeçar, só que pra cima. Tinha uma varanda, duas, na verdade, luzes acesas e uma pessoa contra a luz olhando pra baixo. Pensei na probabilidade de que duas pessoas olhando na mesma direção mas em sentido contrário se encontrem uma no que a outra projeta de si. Era pouco provável, quase zero, então o flanelinha acenou para o carro parado que impedia outro carro de sair que impedia outro carro. Uma sucessão de impedimentos no meio da madrugada. E a pessoa ali na varanda olhando pra tudo com o mesmo desinteresse insone que eu, a diferença é que talvez não tivesse bebido e eu sim, a diferença é que talvez não estivesse fugindo e eu sim, a diferença é que talvez não precisasse levantar a vista e eu sim.