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Mostrando postagens de junho 8, 2021

Aceleração do tempo

  Não entendo a obsessão atual por acelerar o tempo, torná-lo tão adiantado a ponto de perdê-lo. Seja com o áudio do Whatsatpp, o vídeo da ioga ou um podcast, a pressa é uma realidade. A pergunta é: pra que mesmo? Descarto de partida a economia. Afinal, essa fração de segundos amealhada resulta em quase nada, o ganho é tão insignificante que teria alguma valia apenas se tivéssemos de ouvir centenas de milhares de minutos de áudio por dia. Do contrário, acelerar não representa qualquer vantagem numérica, salvo estar mais rapidamente desembaraçado da obrigação de ouvi-lo até o fim. Descartada essa possibilidade, o que sobra é a atenção. Embora desatentos na maior parte do tempo ou mergulhados em atividades cuja exigência de concentração é superficial, encaramos a necessidade de acompanhar um áudio sem avançá-lo como uma tarefa maçante, uma verdadeira tortura. E não estou falando daquela propaganda horrível do Kwai que parece que nunca vai acabar ou de um depoimento de Osmar Terra. Estou

Roupa de sair, roupa de ficar

  Já não faço distinção entre roupa de casa e roupa de sair, tudo se converteu nesse “dress code” indiscernível, a mesma modalidade de vestuário que é uma síntese da vida nem totalmente doméstica, nem inteiramente trajada para o trabalho. A roupa então sendo essa tradução mais bem acabada do estado intermezzo das coisas, que não se definem por nada, pelo contrário, transitam nessa zona de ambiguidade em que tudo carrega uma porção do seu verso. Para citar um exemplo. Outro dia fui à mercearia comprar pão. Sem que o percebesse, usava uma camisa que costumava utilizar apenas pra trabalhar. Tenho por ela carinho, ou costumava ter. Quando me vi separando tomates e cebola de um lado e abraçando uma bandeja de ovos do outro foi que entendi que mentalmente era como se estivesse pronto para sair de casa com destino a outro lugar que não a bodega vizinha. O exato oposto também já ocorreu. Estava numa live da firma usando um calção que só visto para dormir, uma dessas peças que vão sobrando no g

Fiscal de comorbidade

A esta altura, todos já devem ter se deparado com a expressão “fiscal de comorbidade”, que designa aqueles cuja tarefa, atribuída por si mesmo, é averiguar se tal ou qual pessoal é autenticamente detentora de algum problema de saúde, crônico ou não, de modo que possa se beneficiar dessa condição para se vacinar antes dos demais. O fiscal da comorbidade é uma figura sumamente atual e adaptada ao Brasil bolsonarista de 2021, um país onde a desconfiança é a linguagem comum e a suspeição, uma prática corriqueira. Nele, o presidente inventa suas próprias estatísticas, desmentidas no dia seguinte, quando o estrago já está amplamente consumado. Entre nós se desconfia de tudo, da ciência e das instituições que produzem conhecimento, dos pesquisadores e da medicina, da validade das provas e do que dizem seus examinadores. Vivemos o déficit da boa-fé alheia, da palavra como fiadora e do benefício da dúvida. Partimos do princípio de que tentamos tirar proveito de tudo a todo momento, de que há