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Roupa de sair, roupa de ficar

 

Já não faço distinção entre roupa de casa e roupa de sair, tudo se converteu nesse “dress code” indiscernível, a mesma modalidade de vestuário que é uma síntese da vida nem totalmente doméstica, nem inteiramente trajada para o trabalho.

A roupa então sendo essa tradução mais bem acabada do estado intermezzo das coisas, que não se definem por nada, pelo contrário, transitam nessa zona de ambiguidade em que tudo carrega uma porção do seu verso.

Para citar um exemplo.

Outro dia fui à mercearia comprar pão. Sem que o percebesse, usava uma camisa que costumava utilizar apenas pra trabalhar. Tenho por ela carinho, ou costumava ter. Quando me vi separando tomates e cebola de um lado e abraçando uma bandeja de ovos do outro foi que entendi que mentalmente era como se estivesse pronto para sair de casa com destino a outro lugar que não a bodega vizinha.

O exato oposto também já ocorreu. Estava numa live da firma usando um calção que só visto para dormir, uma dessas peças que vão sobrando no guarda-roupa, ao lado de pares de meias de dez anos atrás, verdadeiras sobreviventes que superam calças jeans e sapatos escolares, impondo-se por sua própria resistência ao restante dos habitantes da casa.

Há quem diga: bom, mas pelo menos era a parte de baixo, o calção. Eis o engano, porém, a camisa também combinava com a peça em matéria de penúria, uma velha e já fubá em tom não se sabe se vermelho ou rosa que me servia apenas para espanar estantes e limpar uma ou outra sujeira da mesa.

Estava ali na reunião, portanto, metido nessas vestes molambentas, o cabelo crescido e a barba maior do que o habitual, rindo e falando com os colegas sem me dar conta de que uma fronteira havia se dissolvido desde o início da pandemia e eu não notara o seu sumiço.

Não havia mais um lá e cá, um dentro e fora, um aqui e outro depois, um sair e ficar, circunstância que se manifestava sobretudo no modo de estar vestido, o apuro de uma ida à esquina, banhado e barbeado, e o desleixo de um evento que, noutro tempo, exigiria uma aparição mais formal e cuidada.

Dentro do guarda-roupa, principalmente, a confusão reinava. Nada rimava com nada, apenas um par de camisas sociais e um terno permaneciam intactos, observadores atentos do caos, acima da maçaroca de tecido cuja idade ou destinação já não fazia sentido preservar.

O que a mão pescasse primeiro na pressa de sair ou de estar pronto para a próxima transmissão no Zoom se convertia imediatamente na roupa mais adequada para o momento.

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