Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de julho 13, 2015

Caçada

O ódio é como uma pele de animal recém-extinto. Homem e cão andam lado a lado por muito tempo, até que se dão conta da presença um do outro. O homem para numa sombra. Não venta desde o dia anterior.  O homem fala ao cão e o cão ao homem. Conversam trivialidades. Repassam a cena pela milésima vez. Numa aula na igreja da última cidade, tentou encontrar ódio. Mas só havia substitutos. Foi embora sem responder qualquer pergunta. Espero não ter causado uma má impressão. O cachorro arrebita o focinho. Lá atrás, o conselho decide formar uma comitiva cuja missão será primeiro caçar e depois extrair do homem tudo que possa saber sobre a vida de trinta anos atrás. O homem retoma o passo. 

O que fazer

Agora todos na sala discutem se o homem teria sorrido porque não sabia de nada ou porque sabia de tudo. E tudo, claro, queria dizer apenas uma coisa.   A dúvida era insistente. Difícil elucidá-la. Nenhum manual, nenhum livro, nenhuma cerimônia.   O clima era já de despedida quando um dos presentes, um pouco displicentemente, garantiu que conhecia o homem de muito tempo atrás. Talvez de uma festa.   Disse que o rosto mudara, mas a voz continuava o mesmo sussurro velho. Era inconfundível. Sob o murmúrio, a reunião foi suspensa. O colegiado se reuniria dali a pouco para deliberar sobre a melhor forma de tratar do problema, o primeiro em mais de três décadas de bonança ética e moral.  A comunidade queria uma resposta para o ódio. Era preciso enfrentá-lo. Melhor: era preciso evitá-lo. Lá fora, o homem caminha numa rua arborizada da cidade. Vê uma placa. Comunidade Francisco. Um cão magro aproxima-se e rosna. O homem já o conhecia.

Voltando pra casa

Todos na sala falam sobre ódio. Um homem então se levanta e, sem fixar nenhum rosto,  pergunta  se alguém ali sabe de fato o que é sentir ódio. A resposta era óbvia: ninguém sabia. Nada surpreso, o homem encaminha-se em direção à porta do lugar que lembrava uma escola ou as instalações de um abrigo anti-mísseis. Era uma igreja, na verdade, e a reunião que havia acabado de interromper tinha tudo para ser o encontro semestral dos Notáveis da Comunidade Evangelizadora. E de fato era.  Antes de sair, o homem virou-se e sorriu. E no corredor contou as ranhuras nas paredes e os veios de mofo que atravessavam o teto. Essas marcas que o tempo deixa na superfície das coisas. O ódio, segundo ele, era como um bolorzinho qualquer alimentando-se do esquecimento todo dia um pouco mais. Mas aí ele já ia longe e não voltaria para compartilhar a descoberta.