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Voltando pra casa

Todos na sala falam sobre ódio. Um homem então se levanta e, sem fixar nenhum rosto, pergunta se alguém ali sabe de fato o que é sentir ódio.

A resposta era óbvia: ninguém sabia.

Nada surpreso, o homem encaminha-se em direção à porta do lugar que lembrava uma escola ou as instalações de um abrigo anti-mísseis.

Era uma igreja, na verdade, e a reunião que havia acabado de interromper tinha tudo para ser o encontro semestral dos Notáveis da Comunidade Evangelizadora.

E de fato era. 

Antes de sair, o homem virou-se e sorriu.

E no corredor contou as ranhuras nas paredes e os veios de mofo que atravessavam o teto. Essas marcas que o tempo deixa na superfície das coisas.

O ódio, segundo ele, era como um bolorzinho qualquer alimentando-se do esquecimento todo dia um pouco mais.

Mas aí ele já ia longe e não voltaria para compartilhar a descoberta. 

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