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Mostrando postagens de novembro 24, 2020

Francisco

  Nessa mesma viagem do meteoro , conheci o Francisco, que pastora uma estátua dia e noite numa cidadezinha do interior do Ceará. Cuida para que não se deteriore, vende quinquilharias e orienta para as rezas. Ocupa-se inteiramente da saúde do santo, cujo nome agora não lembro, mas posso pesquisar e depois volto aqui pra contar melhorzinho, com detalhes. Pois o Francisco, que é sozinho na vida, trepou-se no oco da estátua para pintar a cabeça do santo, a escada quebrou-se e ele passou o dia inteiro suspenso, sem poder descer nem ninguém que o acudisse porque nesse dia o povo da cidade não deu trela ao sagrado e preferiu gastar o tempo com as coisas mundanas, com os pecados. Apenas no dia seguinte apareceu no terreiro uma filha do Francisco que mora por perto e o procurou aflita na casa. Sem dar por ele, foi ao quintal. Como não o achasse, olhou pra estátua e, no alto, estranhou que houvesse um ponto escuro. Era o pai. A história é contada pelo Francisco encostado numa sombra de árvore

Avistamento

       O burburinho, e então os vídeos pipocando nas redes sobre o avistamento de um objeto no céu, testemunhos e rapidamente a conclusão: eram os chineses que invadiam o Brasil. Não era, mas fiz a associação entre o rastro de luz e o meteoro que riscou o estado meses atrás e cujos fragmentos não foram ainda encontrados. Sumiço. Ninguém deu por nada ainda. Dizem que se esfarelou em atrito, desfez-se todo. E lembro que me destaquei de Fortaleza pra serra atrás de caco de pedra caída do espaço, a filha pedindo “pai, traz um pedaço da Lua”. Trago, filha, se achar. Não achei, nem acharia. Diabo de invenção essa de sair no meio do mundo caçando o que se findou. Cheguei a entrar na mata e bater na porta da casa do povo, que, rindo, apontava mil e uma pistas, de pedregulhos dentro de lagoas a outras besteiras que, na hora, não vi que eram pura invencionice. Mas, como na série que eu via quando menino, eu queria acreditar. Por isso nem me importei quando me mandaram esse vídeo do avistamento d

Dia do voto

 Voto no mesmo lugar há mais de 20 anos, uma escola de bairro de periferia com muro amarelo e verde descascado ao lado de uma feira, ou a feira é que lhe faz vizinhança, não sei quem chegou primeiro. Escola pública, nota-se logo na entrada e pelo nome, que homenageia um deputado.  Iniciais seguidas de um Carvalho ou Bezerra ou Pereira, esses sobrenomes típicos e sumamente comuns que batizam de hospitais a viadutos. Não tenho mais conexões com o bairro. O bairro inteiro na verdade sumiu e em seu lugar construíram um bairro cenográfico da noite para o dia. Logo, todo mundo que encontrei no domingo é figurante, gente paga para desempenhar seu papel e simular um passado. O vendedor de picolé, o traficante na esquina balançando uma chave de camiseta e boné, o fiscal da sala, o mesário que me olha esquisito como se me conhecesse, mas não me conhece porque ele é um ator que nasceu em 1992 e dirige Uber nas horas vagas. Minha família já foi embora do bairro, mesmo os amigos não estão mais ali.

A palavra do ano

Fiquei pensando na palavra do ano de 2020, naquela que representa melhor que qualquer outra esta temporada que vai se encaminhando para o fim. Um ato de fé supor que as palavras governem o mundo, mas o contrário disso é imaginar que toda matéria de linguagem, inclusive sonhos e corpo, estão esvaziados de sentido.  Primeiro, as mais óbvias: confinamento, distanciamento, Zoom, “live”, Covid e por aí vai, todas mais ou menos situadas dentro de um modo de vida que foi se impondo ao longo dos últimos meses e em torno do qual realinhamos noções de saúde e de convívio com esse outro de quem tivemos de nos afastar por obrigação. Cada uma carrega sentidos diversos, fixam tempos e remetem a um estágio diferente deste ano: janeiro, quando nada fazia crer que viveríamos tudo isso; fevereiro e março, o início da grande onda de recolhimento. De abril a julho, uma agonia a cada contabilidade de morte. E assim por diante, até chegarmos aqui, ao momento no qual tudo é passado sem ter sido de fato. Não