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Mostrando postagens de novembro 4, 2017

Uma tarde assim

Uma tarde que passa arrastada, que antecede uma segunda e uma terça e também uma quarta, que é uma antes do fim do dia e outra no começo, que se desfaz lentamente e logo se recupera. Uma tarde assim não custa a passar. Uma tarde assim dura por quanto tempo for necessário.  Dez longas tardes passadas em espera. Andar pela casa, recolher roupas, enfiá-las na máquina goela abaixo para que percam as marcas e os cheiros da semana, para que voltem limpas de toda nódoa, para que estejam novamente prontas ao uso, para que se embaracem mais uma vez nesse cheiro que nunca passa.  As nódoas, a areia nos bolsos que trazemos da praia, as marcas de elástico das roupas na virilha e pernas, o bronzeado de mangas e golas, os cortes nos dorsos porque não aprendemos ainda a segurar pedras sem deixá-las cair. Os grãos depois no chão do banheiro. O sol que espantamos com água e xampu, cabelos embaralhados como cartas e ombros queimados como se postos para secar no quintal a ver se ganham

Lugares onde a água se junta a outra água

Passo horas assim, admirado porque leio Carver. Todos os seus poemas de um livrinho com composições reunidas por ele significam tanto o gratuito e banal quanto o extraordinário e cheio de propósito. Seja falando de uma fonte, um regato, um riacho cuja boca se abre e engole a água anterior. Seja narrando o encontro com uma aeromoça de mãos vistosas que se fixaram em sua memória, agarrando-a durante um voo sobre Mato Grosso. Carver escreve sobre um poeta que lia e levava pra cama. Adormecia segurando seu livro, acordava e ele estava lá. Era o lugar seguro, o sossego, o ponto de partida e chegada, tudo no mesmo lugar. Tenho feito o mesmo.  Uma vez lhe perguntaram o que fazer da vida, qual o seu segredo, esse tipo de pergunta que fazem a poetas que de repente parecem como esses gatos sossegados num canto da sala a observar o movimento de pernas e braços e som desarticulado que sai das nossas bocas.  Ele respondeu: preste atenção.  Não posso imaginar outra maneira de res

Cemitério

Hoje talvez chegue diferente ao cemitério.  Na última vez, lembro de ter me mantido distante. Era agosto, talvez setembro, e brinquei com minha filha entre túmulos. Corremos um pouco. Logo encontramos um que tinha uma casinha e, dentro dela, duas bonecas.  Cozinha, sala, área de lazer, quartinho de criança e uma cama. Ficamos um tempo ali olhando os móveis e os confrontando com a foto da menina morta. Não recordo seu nome, apenas que tinha quatro anos.  Quis explicar a minha filha por que havia um brinquedo no cemitério. Não soube dizer se era certo nos divertirmos com a casinha de bonecas que enfeitava a lápide. De todo modo, era a única distração para uma criança que visita um lugar como esse.  Mas isso foi antes. Hoje voltaremos lá. É outro tempo, diferente de agosto e setembro, quando me sentia suspenso por um fio que ameaçava se romper a qualquer momento. Foi um alívio estar entre pessoas já plenamente passado.  Hoje talvez encontremos outras coisas. Talvez fiquemos

Corrida espacial

Sessenta anos atrás, uma cadela foi enviada ao espaço pra que vagasse por cinco dias ou cinco horas.  Autoridades divergem sobre quanto tempo Laika – era o nome dela – teria suportado antes de morrer. O barulho, o calor, tudo era excessivo para o organismo frágil de uma cachorra lançada ao infinito. De todo modo, era o marco de uma disputa entre potências, e num caso assim fica claro que o que menos importa é o que pensa ou quer um bicho sem arbítrio. Seguiram-se novos episódios de tensão nessa corrida espacial. Lançamentos de satélites, cosmonautas aventureiros e, finalmente, a chegada do homem à Lua. Há uma dúzia de filmes sobre os passos da humanidade no espaço, grandes ou pequenos. Nenhum deles é sobre as últimas horas de Laika, que talvez vague ainda hoje como poeira, estrela, como rastro de meteoro colidindo com outros pedaços de mundos em decomposição. Disseram que havia comida suficiente para poucos dias. Então, desde o início, a intenção era projetar o an