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Mostrando postagens de novembro 15, 2018

Um novo arquivo

Nomeio o arquivo. Em seguida começo a escrever. Amar é passar a chamar o impalpável pelo nome. Antes não o conhecíamos, agora é familiar, um rosto, um cheiro, uma certa topografia afetiva, o estranho progressivamente tornando-se mais e mais perto, o longínquo criando braços nesta outra margem. O arquivo é despretensioso. Chama-se “contos”, e nele vou juntando textos escritos nos últimos cinco ou seis ou dez anos, no caso de alguns mais antigos que remontam a outra vida. A maior parte, no entanto, é composta por material recente, dois anos, no máximo. Tenho dificuldade de ir mais longe, então me apego a esse agora escapadiço que tento reter a um custo alto. O custo é ir cavando mais fundo enquanto escrevo, varejando feito mosca um prato de comida ou um bicho solto no pasto. Cavar como minerar. É com isto que escrever se parece em muitos momentos, mediante ferramentas cegas e inadequadas, ir batendo e lascando o metal contra pedras afiadas à procura sabe-se lá de quê, sem q

Um encontro

A mulher de cabelo descolorido o encara mais uma vez. Sheila, ela mentiria mais tarde. Usa shortinho curto e top rosa. Na verdade, mal chega a erguer a mão. Sai na frente. Logo atrás segue o homem. Magro, veste calça bem engomada e camisa passada por dentro, uns sapatos engraxados marrons que lhe dão mais cinco anos além dos 43 que tem. Carrega uma capanga sob o braço. Os dois se afastam da praça, àquela hora ruidosa. Entram numa rua movimentada, barracas de milho e churrasco e produtos importados, quinquilharias chinesas trazidas aos milhares e distribuídas no centro. Ela então pede que se aproxime. Baixinho, pergunta se ele prefere pagar o quarto ou se poderiam ir a um indicado por ela. O homem assente. Andam mais dois quarteirões até chegar ao edifício de fachada espremida entre lojas de estofados. Um prédio que já foi shopping e ótica. O quarto tem cheiro de Leite de Rosas e detergente. A mobília se constitui de penteadeira e cama.   Finalmente a olha sob

Cascas

A casca grossa do baobá, impenetrável como carapaça de bicho antediluviano encontrado náufrago na areia da praia. Era domingo. Passeava pela cidade, visitava marcos históricos da fundação da metrópole. Um farol, uma estátua, uma praça. Procurava entender a raiz, como começara e como terminaria. Fora parar ali andando, ao lado da árvore gigantesca cuja copa encobria outras copas. O corpo riscado como o dela, tatuado às dezenas e centenas, nomes inscritos de adolescentes apaixonados, corações feitos com corretivos, balões registrando aniversários, um sem número de datas. Declarações de amor. O tronco largo, de quantos braços precisaria para envolvê-lo, quantos corpos bastariam para alcançar a largueza daquela árvore? Lembrou então de sua pele rugosa, o trato severo dos produtos baratos que usava para se banhar, lavar o rosto, as partes. Nele não havia diligência nenhuma. Cravos e espinhas o cobriam como escaras do baobá doente que, no entanto, preservava uma vit

Interior

Uma coisa bonita é quando pergunta: qual é o seu interior? Como se houvesse uma cidade aonde pudesse voltar a cada temporada, um lugar de pouso, descanso e rememória. Feita em modo de conversa, o objetivo não é descobrir nenhuma qualidade pessoal ou radiografar a natureza morfológica de nossos órgãos vitais, se de fato existem ali dentro da caixa torácica pulmões, fígado e coração. A pergunta quer simplesmente entender de onde você vem. Parte da certeza de que você é daqui, de Fortaleza, mas chegou à cidade vindo de outra, perto ou distante, e dela carrega algo, uma lembrança, uma experiência, um conjunto sensorial diverso ao qual recorre quando precisa entender do que é feito. A maneira como é formulada, portanto, já pressupõe que, embora viva nesta geografia, o seu interior é outro. Para onde você volta, então? A essa paisagem afetiva e geográfica. O seu lugar de origem, seja a própria, seja a familiar. Se você não tem, seus pais ou avós devem ter. Quando crianç