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Mostrando postagens de junho 14, 2021

Crônica da vacina

  A Pfizer, muito carente, insistiu enquanto pode. Escreveu emails desesperados nos quais suplicava por uma palavra, qualquer que fosse, mas que o destinatário se dignasse a responder, do contrário quedaria doente sabe-se lá de que moléstia, ela previa. Mas do outro lado havia um interlocutor insensível para o que ela tivesse a dizer, de maneira que se passaram 30, 40, 50 mensagens, até chegar a 80, quando ela se convenceu de que bastava e deu tudo aquilo por encerrado: havia se cansado, não restava nada, era o fim. Quando ele finalmente a procurou, muitos meses depois, Pfizer já estava noutra, imunizada daquele vírus que a deixara como que cega para todo o corpo que não fosse o dele. A vida tinha se aberto, e ela agora passava de mão em mão, de braço em braço, no que era feliz, muito feliz. Com a Janssen foi pior. Jamais se prestou a qualquer resposta, simplesmente desapareceu, e ele sentiu na pele o que era abandono. Disse que viria, mas não veio, anunciou que chegaria, mas não chego

PCR

  Que temos sonhos estranhos na pandemia, disso já sabemos todos desde pelo menos março do ano passado, quando, às voltas com as primeiras notícias e os sinais iniciais de recolhimento domiciliar sem data para retorno, passamos a uma rotina de sobressaltos. O assombro logo se tornou o “novo normal”, essa expressão detestável que empregamos para designar o novo, duplamente falha porque incapaz de domesticar o que se anunciava e de advertir para a enormidade do desafio que vinha. Era como tapar um sol com a peneira. De modo que, já naquele momento, sonhávamos com esquisitices, a madrugada sobrelevada por imagens que antes não nos visitavam. Eu mesmo cheguei a anotar algumas delas, mas logo me desfiz, como de resto com tudo, deixei de lado e as tomei como bobagem. Hoje me arrependo, queria saber com o que me ocupava enquanto dormia. Ontem, por exemplo, sonhei fazendo um teste PCR, esse em que enfiam uma sonda nariz adentro, causando uma sensação incômoda, como posso imaginar, mas necessár

Consulta

  Hoje na médica passei um tempo calado tentando lembrar quando tinha sido a última vez que havia ido a um consultório, mas desisti porque de fato fazia bastante tempo, de maneira que me senti adormecer numa viagem a outra era geológica. Não sei se um clínico geral ou dentista ou dermatologista, porque houve esse momento em que os cabelos estavam caindo num ritmo que eu julgava acelerado mesmo para os padrões de quem perde cabelos desde muito jovem e se acostumou a vê-los se juntar no ralo do banheiro ou sobre o tampo da mesa, dentro de um livro. A médica perguntou então como eu estava, eu respondi que não sabia, e de fato era uma resposta sincera, eu não faço a menor ideia de como esteja, embora me sinta bem, nada pode assegurar, senão um exame minucioso, que tudo se passe nos conformes, que a autoimagem se ajuste ao corpo, que o corpo em si exista como eu o imagino. Ela disse que pessoas como eu, que não vão médico, costumam supor que estão bem, que têm uma saúde de ferro, e o modo c