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PCR

 

Que temos sonhos estranhos na pandemia, disso já sabemos todos desde pelo menos março do ano passado, quando, às voltas com as primeiras notícias e os sinais iniciais de recolhimento domiciliar sem data para retorno, passamos a uma rotina de sobressaltos.

O assombro logo se tornou o “novo normal”, essa expressão detestável que empregamos para designar o novo, duplamente falha porque incapaz de domesticar o que se anunciava e de advertir para a enormidade do desafio que vinha. Era como tapar um sol com a peneira.

De modo que, já naquele momento, sonhávamos com esquisitices, a madrugada sobrelevada por imagens que antes não nos visitavam. Eu mesmo cheguei a anotar algumas delas, mas logo me desfiz, como de resto com tudo, deixei de lado e as tomei como bobagem. Hoje me arrependo, queria saber com o que me ocupava enquanto dormia.

Ontem, por exemplo, sonhei fazendo um teste PCR, esse em que enfiam uma sonda nariz adentro, causando uma sensação incômoda, como posso imaginar, mas necessária ante a possibilidade de adoecer sem os devidos cuidados ou ao menos a certeza de que se está infectado.

Sim, apenas imaginar, porque de fato nunca me submeti ao exame durante esse período de pandemia, jamais fiz um teste para a doença, falo portanto em tese, a partir de descrições de terceiros.

No sonho, porém, a sonda, não sei como se chama mesmo, era introduzida até o meu cérebro, e sua ponta, que tinha um algodão, cavoucava alguma coisa ali, como se quisesse provar ou descartar não apenas Covid, mas algo cuja natureza eu não sabia precisar.

Esse foi o sonho, que se encerrou à medida que a sonda avançava, emendando-se com outro, no qual eu visitava o bairro antigo, o bairro da infância, reencontrava amigos e moradores, revia lugares e casas e caminhava pela rua na qual brinquei quando tinha dez anos.

Uma viagem no tempo, um recuo, como se enviado por sonda, como se vagasse por terreno inexplorado, separado do agora por muitas camadas.

Entre um e outro, havia um terceiro sonho, que servia como elemento articulador que ampliava o sentido do primeiro e o projetava no segundo, mas do qual não lembro agora, o que é uma pena, porque sinto que é precisamente a peça que falta para entender a correlação entre esses materiais aparentemente tão diversos.

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