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Mostrando postagens de outubro 3, 2017

Mutilados

Disse que morderia e de fato mordeu. Restou essa marca com a qual ela não saberia bem como lidar no dia seguinte. Disfarçou com pó e um lenço ao pescoço, mas em casa, sozinha, orgulhava-se diante do espelho. Uma marca, finalmente. Não abriria mão. Uma primeira marca que não era de nascença, tampouco de acidente como a que levava no dorso da mão esquerda.  Mordeu mais vez uma vez, agora sem avisar. No braço e depois na bunda, duas arcadas afundando na carne branca com precisão. Podia adivinhar o desenho irregular dos dentes apenas olhando pra elas. Os caninos mais pontiagudos que o normal porque desde criança os de cima não encaixavam nos de baixo. Como não havia fricção, tinham ficado assim, amolados, perfurantes, dentes como de cachorro e não como os de gente. Um dia foi a vez dela. Machucou o lóbulo da orelha, ele protestou. Então pediu que parasse, mas logo foi o peito. Deixou uma área roxa que depois esverdeou até se perder, uma vaga mancha cinza que poderia ser qualquer

Comer corações

Tente. É um exercício. Separe corações, um de cada lado da mesa. Em seguida olhe e escolha, revolva, corte em fatias bem finas ou grossas, tanto faz. Comer corações aos bocados ou de uma vez só.  O mais vermelho talvez seja suculento, o mais seco nem sempre é o mais duro. Há corações de todo tipo e tamanhos, gostos e texturas. Corações amargos e doces como os clichês dos romances água com açúcar. Corações salgados, corações gordurosos e apenas músculo. Escolher é talvez a parte mais divertida. Percorrer as prateleiras dos supermercados à procura, passar a vista por rótulos, procurar nas entrelinhas de cada coração os materiais de que é feito, se têm excesso de fibras, se causam câncer, se podem levar à morte por asfixia. Corações indigestos.  Uma variedade impressionante de corações dispostos em fileira ao lado da banquinha de doces, pouco depois do setor de frios. A gente acha que nunca vai encontrar mas encontra. Aquele, por exemplo, afundado no peito magro, por baixo