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Comer corações

Tente. É um exercício. Separe corações, um de cada lado da mesa. Em seguida olhe e escolha, revolva, corte em fatias bem finas ou grossas, tanto faz. Comer corações aos bocados ou de uma vez só. 

O mais vermelho talvez seja suculento, o mais seco nem sempre é o mais duro. Há corações de todo tipo e tamanhos, gostos e texturas. Corações amargos e doces como os clichês dos romances água com açúcar. Corações salgados, corações gordurosos e apenas músculo.

Escolher é talvez a parte mais divertida. Percorrer as prateleiras dos supermercados à procura, passar a vista por rótulos, procurar nas entrelinhas de cada coração os materiais de que é feito, se têm excesso de fibras, se causam câncer, se podem levar à morte por asfixia. Corações indigestos. 

Uma variedade impressionante de corações dispostos em fileira ao lado da banquinha de doces, pouco depois do setor de frios. A gente acha que nunca vai encontrar mas encontra.

Aquele, por exemplo, afundado no peito magro, por baixo da pele escura, um coração acelerado quando lado a lado nos olhamos e deixamos soltar não sei que sorte de palavras que atravessam as paredes e chegam ao outro lado da rua.

Outro mais corpulento, coração imenso, repleto de energia escura acumulada por anos de amores cuja validade passou sem que ninguém percebesse. 

Um livro de receitas para corações. Outro de bons modos. Mais um sobre como evitar corações depois dos trinta anos.

Comer, mastigar bem, dançar com a língua até sentir que a carne virou pasta e agora está pronta pra ingestão. Engolir. Excretar.

Tudo de volta outra vez. 

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