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Mostrando postagens de outubro 19, 2017

Antes de dormir, depois do fim do mundo

Ultimamente vinha pensando na maneira mais correta de narrar, isto é, de transformar tudo em palavra e a palavra em memória, reviver o tempo apenas em sua dimensão estética, cortar fora o que fosse afeto em demasia, que pesasse além do que podia suportar.  Um fracasso, claro, de modo que sequer tentou levar adiante. Mais um projeto natimorto. À velha pergunta sobre o limite da escrita, respondia com um muxoxo, um disfarce para a questão de fundo mais grave, que era: tudo posto aqui, em palavra, afeta o outro tanto quanto a si mesmo, tudo vai e volta, cai e ergue-se. E foi com essa bobajada que consumiu a tarde, as horas difíceis da tarde. Havia escrito cartas, reescrito o já dito, numa peleja sem fim. Agoniou-se com o silêncio, o vexame que era surpreender-se em sobressalto, tão frágil e descarnado, tão impotente e solitário. Desavisado, encontrava o espelho e se surpreendia  desfigurado, o rosto contorcido. Não mais sorriso. Careta. ão era o mesmo. Não era ele. Era outro.  

Violência

E pensou então que todo acidente tinha essa dimensão da palavra, que afetava um modo de dizer, de se referir, que tudo acontecia e imediatamente ganhava essa camada de linguagem. Talvez enquanto acontecesse. Agora mesmo, por exemplo, via-se como um desses acidentados numa maca no corredor à espera de cuidados, um tratamento que fosse, qualquer ampola de analgésico, mas o fenômeno que o abatera não tinha nome. A dor era a dor sem nome, a agonia sequer podia chamar-se porque lhe faltava o básico: a letra que pacifica o dito, o dito que confere carnalidade a uma coisa vazia. L sabia disso tanto quanto eu, sabia que o mero fato de dizer acidente a algo que parecia mais um ataque carregava um mundo de sentidos e disputas. Sabia que não se tratava de amor ou casualidade, era um ato de violência. O jeito bruto de chamar o fenômeno por si. Como quando se cai. O jeito de lamber as feridas, expô-las ao tempo para que fechem, olhar o corpo e chamar à conversa cada pedaço em avaria,

O acidente de L

L me conta que um homem se atirou na frente do seu carro enquanto deixava o restaurante. Era um rapaz e tinha uma cerveja na mão, lembra, talvez estivesse bêbado e o fato se limitasse a isso, um jovem embrigado atacando uma mulher na rua.  E dizer que se limitava, como se se tratasse de ninharia, já era em si uma violência.  Mas é possível que também não estivesse bêbado. É possível que desesperasse. Um desnorteio que houvesse tentado controlar, talvez L o fizesse lembrar de um rosto, quem sabe se L não fosse esse elo que o rapaz evitasse sempre que se deparava com a matéria própria da memória, que queima e fere a pele mais que fogo, mais que asfalto quente. Eu respondia e L prontamente rejeitava qualquer resposta, não estava satisfeita com nada, esperava que eu a consolasse e dissesse que se tratava obviamente de um assédio, um ataque covarde cometido por homens em grupo a uma mulher desgarrada. E pensei que L tinha razão, fora alvo de uma emboscada, sim, era tão frequente