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Antes de dormir, depois do fim do mundo

Ultimamente vinha pensando na maneira mais correta de narrar, isto é, de transformar tudo em palavra e a palavra em memória, reviver o tempo apenas em sua dimensão estética, cortar fora o que fosse afeto em demasia, que pesasse além do que podia suportar. 

Um fracasso, claro, de modo que sequer tentou levar adiante. Mais um projeto natimorto. À velha pergunta sobre o limite da escrita, respondia com um muxoxo, um disfarce para a questão de fundo mais grave, que era: tudo posto aqui, em palavra, afeta o outro tanto quanto a si mesmo, tudo vai e volta, cai e ergue-se.

E foi com essa bobajada que consumiu a tarde, as horas difíceis da tarde. Havia escrito cartas, reescrito o já dito, numa peleja sem fim. Agoniou-se com o silêncio, o vexame que era surpreender-se em sobressalto, tão frágil e descarnado, tão impotente e solitário. Desavisado, encontrava o espelho e se surpreendia desfigurado, o rosto contorcido. Não mais sorriso. Careta. ão era o mesmo. Não era ele. Era outro.  

Um dia inteiro assim, em descompasso. Como se posto pra fora de si a pontapés, chafurdando no próprio lixo à procura de sobras com que se remendar: atar mãos e pernas, fazer plenas novamente articulações e o desejo de fala. 

De repente, a palavra não era mais segura. A palavra estocava agora com força extrema, abrindo feridas mais fundas ainda. Tudo feito para dilacerar. Uma crueldade meticulosa, atruísta. A crueldade  no gesto, sobretudo no gesto.  

E foi como se patinasse no lodo que tinha encontrado numa faxina mais acurada. Percorria os cantos da casa reparando nos locais pouco iluminados que mantivera em segredo. Era um susto que houvessem estado ali durante todo esse tempo. Precisava se livrar de tudo, era a missão assumida de agora em diante. Livrar-se do que não prestava, desgrudar do corpo as memórias, ainda que precisasse cortar à faca a pele já exposta. Um golpe rente, preciso, que extraísse o mais íntimo, que expusesse o mais de dentro, que deitasse fora até mesmo o músculo mais vivo e ainda fresco.  

Levaria tempo, exigiria paciência, tudo requerendo um esforço redobrado, cada passo dado com dificuldade imensa. Todo o amor atirado ao canto pra que morresse. Tempo pra assear-se, ir embora. Não mais a areia, o sol, o caminho às terças. Agora a aridez do caminho só. 

Era tempo de cair por todo um dia e toda uma noite, ou talvez por uma semana, um mês inteiro. Tempo de mergulho, sim, mas numa queda cuja duração não podia estimar. 

Até finalmente se sentir em condições de estar de joelhos. Em seguida em pé, quando só então poderia refazer-se, armar-se de alguma esperança, colher alívio no mais insignificante. E esperar. 

Usaria os materiais que restassem. Ainda que encontrados no lixo, seria com eles que iria trabalhar. E não haveria lugar para a crueldade, tampouco para o cinismo. Não mais.  

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