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Mostrando postagens de junho 2, 2020

Os olhos

Eu tinha a pretensão de escrever sobre o papel dos olhos no meio dessa pandemia, mas isso foi antes de descobrir que o Verissimo já havia feito isso, e feito ao modo do Verissimo, o que significa dizer que eu posso até tentar, desde que esteja certo de que fracassarei. É esse fracasso antecipado que me conforta e dá segurança para continuar. Mas, agora que comecei, vejo que não foi uma boa ideia. Porque, uma vez que a palavra instaura a imagem, e o texto do Verissimo faz isso, é impossível dissociá-la dessa ideia de que pertence a alguém. É como querer se livrar de um cheiro marcante. Simplesmente não dá. Com essa história dos olhos é a mesma coisa. Um dia, estava no supermercado parado. Olhava a caixa, que me olhava de volta. Ambos esperávamos por algo que não sabíamos o que era. Nesse ponto eu me afastei e levantei a máscara, pronunciando rapidamente as palavras, quase como um delinquente que anuncia um assalto: como eu posso ajudar? Ela aguardava que eu dissesse apenas se era débito

Mulher aos pedaços

Não sei se por obra da quarentena ou da proximidade da virada de página de um calendário pessoal, estive à toa nas últimas horas, comovido com a história da “Mulher rendeira”. Aos pedaços, encontrada no lixo em vias de se transformar em entulho para reciclagem. A cabeça entre as pernas longas, tudo sem dar com nada, os membros desconexos atravessados depois de terem sido arrancados a golpes de martelo por operários de construção que cumpriam ordens do banco. Erro de projeto, disseram. Mas ninguém o corrigiu a tempo, de modo que a mulher possuía destino final: o aterro. Tinha com a rendeira uma relação que é talvez a de muitos cearenses: a de passar e olhar, habituado que estava em vê-la sempre vergada sobre o rolo de bilro, o cabelo preso em coque e no rosto essa expressão severa de quem se acha interrompida nos afazeres por uma criança que reina pela casa. Não a achava simpática, mas gostava que estivesse ali. Era assim que a via, quase como uma tia, que é aparentada dessa rendeira po