Não sei se por obra da quarentena ou da proximidade da virada de página de um calendário pessoal, estive à toa nas últimas horas, comovido com a história da “Mulher rendeira”. Aos pedaços, encontrada no lixo em vias de se transformar em entulho para reciclagem. A cabeça entre as pernas longas, tudo sem dar com nada, os membros desconexos atravessados depois de terem sido arrancados a golpes de martelo por operários de construção que cumpriam ordens do banco.
Erro de projeto, disseram. Mas ninguém o corrigiu a tempo, de modo que a mulher possuía destino final: o aterro. Tinha com a rendeira uma relação que é talvez a de muitos cearenses: a de passar e olhar, habituado que estava em vê-la sempre vergada sobre o rolo de bilro, o cabelo preso em coque e no rosto essa expressão severa de quem se acha interrompida nos afazeres por uma criança que reina pela casa. Não a achava simpática, mas gostava que estivesse ali.
Era assim que a via, quase como uma tia, que é aparentada dessa rendeira porque também costureira, inclinada sobre a máquina durante tardes a fio, pelos cômodos o matraquear do pedal que aciona agulha e linha. Uma familiar, portanto. A imagem dessa mulher que trabalha e faz do ofício a renda, como tantas da rua naqueles anos perdidos em que pulávamos de casa em casa, sem pouso sossegado, empoleirados em traseiras de caminhões.
E lá estávamos nós, no Centro, eu de braço tomado com a mãe, que corria às lojas a comprar produtos para a irmã e, se sobrasse dinheiro, algum brinquedo para mim, cuja atenção se detinha em fachadas e nos pontos cardeais de uma cidade que foi desaparecendo. O banco dos peixes, uma esquina onde o vento açoitasse, uma vendedora mais bonita. Enfim, os marcos afetivos. Esse era o menino, e a ele a escultura estava ligada por esse cordão costurado do tempo, fio estendido da infância ao homem de hoje.
Foram esses olhos híbridos que viram o que restara: uma mulher desmontada e atirada ao espaço vadio, esquecida para nunca mais. Daí a comoção, não somente porque, mesmo destroçada, a rendeira mantivesse o mesmo olhar de aprumo, um modo de interrogar o mundo que preservava dignidade e desafio. Mas também por saber de como havia sido resgatada desse fosso por alguém que suspendera o que estava fazendo e a levara para casa.
Um professor, gente destinada ao exemplo, categoria tão castigada nestes dias maltratados. Pois foi ele que calhou de alarmar a todos para o absurdo que a gente não enxerga porque estamos confinados e também embotados, de maneira que os desmandos se processam sem alarde, sob a vista de todos.
O professor enfiou-a no carro e tratou de procurar autoridades, que, alertadas, valeram-se das desculpas de sempre para escamotear o que é evidente: o desapreço à memória, o descuido com o que não tem serventia imediata, a ignorância para o mais íntimo que temos numa metrópole que faz desabar e reconstruir numa velocidade incrível, cidade que espicha prédios na orla e se gaba dessas paredes envidraçadas com material temperado e calçadas ínfimas azulejadas.
A tudo isso prefiro o rosto encovado mas firme e as mãos finas da mulher que foi parar no lixo, os pés descalços de dedos magros como os dessas figuras femininas que povoam a casa desde a meninice.
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