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Mostrando postagens de agosto 21, 2018

Duo

“Contenção e dissipação.” Tinha anotado essas palavras num bloco antigo esquecido numa gaveta. Aspeadas, presumo que quisessem dizer mais do que de fato dizem. Uma ideia para um conto, quem sabe as linhas de força de uma história, as bases para um personagem. Vai saber. Agora olho para elas como se fossem uma contrassenha, o  password como os dos jogos de videogame que me permitiam viajar a fases mais adiantadas ou ingressar em mundos cujo acesso de outro modo seria impossível. Contenção – uma tarefa. Dissipação – sobretudo um verbo. Missão e exercício. Dois movimentos singulares num ato performativo. Primeiro o mistério do acúmulo, a reunião de forças, a energização. Depois jorro e fragmento. Tensão e jato. Sexo e ejaculação. Pensando bem, há mesmo um sentido de complementaridade entre elas. Como se, juntas, apontassem para um rito procedimental. Procedimento-padrão: contenção seguida de dissipação, que antecede nova fase de contenção. É uma anotação a

Uma foto triste

Não sei se consigo falar um instante sobre essa foto nova na qual apareço sorrindo e de olhos apertados e os cabelos mais longos e mais grisalhos também. É uma foto de duas semanas atrás, talvez três, portanto lembro perfeitamente de tudo que se passou naquele momento. O instante exato da foto. Lembro de desejar aparecer muito bem e sorrindo e mais que isso: lembro de estar de fato muito contente. Por quê? Não sei ao certo. Mas a foto diz que sim. Na foto eu assino cada folha de testamento e repito mais uma vez as mesmas palavras que venho repetindo desde muitos dias antes, quando o mantra era remédio e a novena uma forma de organizar o tempo em porções iguais. Palavras que haviam sobrado, colhidas no escombro. Feitas de matéria arrasada. Palavras de escassez, mas boas palavras com as quais podia agora construir e desenhar e dançar numa noite de sábado. Palavras para beber e ir ao cinema e varar madrugadas a jogar sozinho diante da TV luzindo como o centro

Praia/sertão

Em pesquisa rápida para a crônica semanal que escrevo no jornal O POVO, chego a uma página que explica em pormenores o cheiro do mar. Falava de vento, essa força que arrebata, e queria entender por que o mar tem o cheiro que tem, um odor característico que é como a junção de muitos odores. Procurava uma palavra que traduzisse então o predomínio do salgado. Fui bater em corrosão. Da crônica original excluí um parágrafo inteiro que reproduzo agora: “Aqui o vento ergue-se desde o mais perto dos pés, arrancando da terra a quentura, e depois levanta-se num ímpeto, percorrendo o corpo e nesse trajeto deixando as marcas”. Agosto e setembro são os meses de ventania que atraem ao Ceará turistas e praticantes de esportes. É quando as hélices giram mais velozmente, as árvores agitam-se quase a deixar as calçadas e sair em caminhada e as roupas estendidas nos varais reviram-se sobre si mesmas. Tudo é inclinação e dobradura. Mas há principalmente essa particularidade:

O professor

O professor escreve e pergunta se há objeção quanto à mudança de horário da aula. Como ninguém respondesse, assume a alteração. Um seminário de filosofia sobre a obra de Camus. Quatro aulas. Faltei à primeira. Para a de amanhã consta que precisaria haver lido uma obra que não li. Provavelmente faltarei também. Mas há sempre essa hipótese de que compareça e, já na sala, procure uma das cadeiras ao canto e lá fique por duas ou três horas. É um exercício de desmaterialização esse de estar à margem, suspenso enquanto os outros falam, tateando sentidos no fluxo de palavras. Ideias de uma galáxia alienígena. Outra vida, suponho que a gravidade talvez maior empurre os corpos para baixo. Na faculdade todos andamos noutro ritmo. Gosto de estar no bosque por duas razões, primeiro por chamar-se bosque e segundo porque se trata de um pedaço muito longe da cidade. O professor então arremata renovando o convite e repassando os compromissos que espera que seus alunos de pós