Não sei se consigo falar um
instante sobre essa foto nova na qual apareço sorrindo e de olhos apertados e
os cabelos mais longos e mais grisalhos também.
É uma foto de duas semanas
atrás, talvez três, portanto lembro perfeitamente de tudo que se passou naquele
momento.
O instante exato da foto.
Lembro de desejar aparecer
muito bem e sorrindo e mais que isso: lembro de estar de fato muito contente.
Por quê?
Não sei ao certo.
Mas a foto diz que sim. Na foto eu assino cada folha de testamento e repito mais uma vez as
mesmas palavras que venho repetindo desde muitos dias antes, quando o mantra era remédio e a novena uma forma de organizar o tempo em porções iguais.
Palavras que haviam sobrado,
colhidas no escombro. Feitas de matéria arrasada. Palavras de escassez, mas
boas palavras com as quais podia agora construir e desenhar e dançar numa noite
de sábado.
Palavras para beber e ir ao
cinema e varar madrugadas a jogar sozinho diante da TV luzindo como o centro
aceso de um objeto em queda.
Por isso sorria. Porque ainda
tinha palavras comigo. Não esvaziara por completo. Era um corpo roto, um trapo, mas ainda havia a possibilidade de falar sobre ruína, falência, esgotamento.
Não há esforço no riso, bastou que
abrisse levemente a boca e os dentes irregulares se encarregaram de
produzir esse efeito entre o contentamento e a careta.
Alguém fez um gracejo quando
postei, não lembro qual nem quem, mas talvez tivesse razão. Era uma foto engraçada.
Não a foto, nem o sorriso, mas o sorriso naquela foto carregava esse travo agridoce.
Como se, no momento da
vertigem, eu tivesse conseguido suspender o tempo e pensado: bom, mas é isso
então que sentimos quando os objetos do cotidiano se deslocam a uma velocidade
impressionante e precisamos mais uma vez estar em ordem para o mundo.
Um dia talvez veja essa foto de
outro modo. Quem sabe a encare de um jeito triste.
Mas hoje, especialmente hoje,
gosto dela pelo garimpo que a foto esconde, por essa pequena lavoura doméstica, por ter ido ao mais fundo e agora estar emergindo.
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