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Mostrando postagens de abril 20, 2018

Carlos, o bêbado

Finalmente reencontrei Carlos, o bêbado. Carlos é e não é o que pensamos. Está na praia todos os dias, carrega sempre uma garrafa de cachaça a tiracolo. É um pastorador de ventos. Ontem tangia um gato quando passei de bicicleta e ele olhou sem me ver, apenas vagamente impressionado por me reencontrar ali tanto tempo depois. Quis lhe perguntar, chegar mais perto, mas era tarde e a fome batia. Carlos: a barba mais longa, o olhar quebradiço de quem não dorme já há muitos dias, um aspecto em tudo destoante do Carlos que imaginei. O tempo opera pequenas vilezas. Convém na cair nas suas armadilhas. Carlos foi meu confidente, agora já nem me escuta. Antes que o alcoolismo o lançasse nesse torvelinho de desvario no qual não distingue o dia da noite, eu lhe puxava a manga da camisa e perguntava: ela virá? Carlos assentia. Ela sempre vem. E então tornava a bebericar aguardente como o passarinho extraviado ou as aves de papel que ela deixara por ali não fazia tanto tempo.

Sonhos

Sonhos que se tornaram frequentes: Mulher deitada de costas, rosto encoberto, nádegas à mostra, fala baixinho algo que não entendo. Um convite ou um gesto qualquer de repulsa? Perseguição, tiros, morte. Morri duas vezes na mesma noite, corria e não adiantava. Numa esquina, dois homens perguntavam nome e profissão. É você, diziam. Disparavam. Sentia o corpo dormente, os membros formigando, a cabeça tonteando. Nos sonhos morremos sem morrer. Acordamos assustados depois. É o mais próximos que estamos do fim sem de fato havermos chegado ao fim.   Noutra semana sonho que danço a madrugada com uma mulher muito bonita que me pergunta se sei chegar andando até a praia. Não quer ir de ônibus. Falo que é distante e o caminho, deserto. Ela se recusa. Precisa ir a pé, do contrário não saberão que é ela. Pede que a acompanhe, mas iremos sem sapatos ou sandálias. Descalço os pés. Estou na rua novamente.

Porta

Há horas rasuro a folha, procuro o ponto certo como se batesse o bolo ou apostasse noutra coisa que requer paciência. Encenar o ato, encarnar a dor. Escrever o dia quando o dia ainda acontece. E pensar: quem acordará amanhã? Quem do outro lado andará até a porta e na porta encontrará outra porta? O mesmo.